VAN ZELLER - A REPÓRTER SEM MEDO

Van Zeller - a repórter sem medo


É a portuguesa que mais se tem destacado no grande jornalismo de investigação na América. Radicada nos Estados Unidos há vinte anos, cada programa que apresenta e investiga com a sua equipa resulta num verdadeiro thriller de imagens reais onde se conta o lado mais negro, sem medo de se cruzar com as figuras mais procuradas e temidas dos vários tipos de tráfico no mundo. 


Mário Augusto



Atrabalhar para o canal da National Geographic, a jornalista portuguesa é hoje uma referência reconhecida pelos programas Trafficked – Na Rota do Tráfico. Cada episódio envolve-nos como se tratasse de um thriller, tem tudo o que os filmes têm mas a ação e as personagens são mesmo reais e movimentam-se no submundo de todo o tipo de tráfico. 

Nascida em Cascais, esta jornalista destemida arrisca sempre no limite para cada história e cada episódio. Filma, olhos nos olhos, traficantes e 

delinquentes, mas sempre com uma atitude de respeito para registar melhor a sua história, e mostra os mundos mais duros e menos conhecidos.

É a primeira portuguesa a ter um programa em nome próprio no canal da National Geographic. A segunda temporada de Na Rota do Tráfico com Mariana Van Zeller voltou a ser um dos grandes êxitos do canal de cabo. Na primeira pessoa, desvenda em entrevista os segredos e bastidores desta série consagrada. É um dos mais arriscados e entusiasmantes trabalhos de jornalismo e que lhe tem trazido o reconhecimento internacional. 


SELECÇÕES DO READER’S DIGEST: Como é que alguém consegue produzir um projeto com este envolvimento e abertura, dos que estão no limiar da legalidade?


Mariana van zeller: Confesso que não é fácil e ocupa praticamente a minha vida de todos os dias para a produção e filmagens. A parte mais desafiante deste trabalho é conseguir o acesso aos mercados negros. Mundos aparentemente inacessíveis, mais ainda para registar em imagens. No final, em alguns casos até parece fácil quando se vê a série (risos), parece que é só chegar e as pessoas dizem sim, mas para cada para cada resposta positiva e autorização para filmar obtemos dezenas, às vezes até centenas, de «nãos». Diria que a parte mais desafiante do nosso trabalho é o acesso, chegar a essas pessoas e lugares.


As duas séries de Na Rota do Tráfico calharam a meio da pandemia. Estavam a acabar a primeira série e a preparar a segunda temporada?!


É verdade, a primeira série acabámos de filmar mesmo na semana em que começou a pandemia global e depois ficámos dois a três meses em pré-produção para a segunda temporada e começámos a filmar em junho de 2020. Foi mesmo a meio da pandemia. A verdade é que nos apercebemos que, durante o processo de filmagem, que ocorreu durante a pandemia, houve uma explosão de mercados negros e, portanto, que era a altura ideal para fazer uma série como esta.


Qual foi a dificuldade maior de preparar todo este trabalho e até que ponto é que na rodagem se consegue fazer como se pensou? Imagino que há muitos contratempos e imprevistos... 


Nós partimos sempre para o campo com uma ideia do que é a história, como vai ser e até o que vamos encontrar, mas, como todos os bons planos, cai por terra mal pomos os pés no campo real. Diria até que as melhores histórias são aquelas que nos surpreendem, as que acontecem sem nunca estarmos à espera. 

Muitas vezes, já no terreno temos que começar outra vez praticamente 

do zero, o que significa mais trabalho, mais tempo fora de casa, mais tempo longe da família e mais desafios para produzir uma série que, em si, já é bastante desafiante.


É risco calculado? 


É (um risco) supercalculado. Nós temos reuniões semanais sobre segurança antes de irmos para qualquer sítio. Começamos com reuniões praticamente diárias em que nos asseguramos de que temos o que é preciso para termos a certeza de que temos o treino necessário, o equipamento necessário, os contactos necessários no caso de algo correr mal. Obviamente, a maior parte destes mercados negros acontecem em lugares de maior risco, e é lá que temos que fazer as filmagens, nos lugares de maior risco. Neste sentido, nenhuma história vale uma vida. Nem eu, nem ninguém da minha equipa, compromete a vida por causa de uma história que queremos contar. Todos nós temos muita consciência do risco.


O que a atrai neste tipo de reportagens tão duras e nem sempre fáceis de fazer?


Acho que a maior parte das pessoas pensa que eu faço este trabalho por uma questão de adrenalina, e é errado. A adrenalina não me atrai de modo algum. Faço este tipo de trabalho porque tenho uma curiosidade enorme acerca do que acontece nestes submundos mais negros. Todos sabemos que têm impacto nas nossas vidas. Basta pensar que metade da economia global é constituída por estes mercados negros e cinzentos e nós sabemos muito pouco sobre eles. Portanto, é importante descobrir o que se passa, quem são os players nestes mercados negros, e tentar descobrir as suas motivações, e isso é o que procuro.


Porquê a atração por este tipo de reportagens? Como desenvolveu o gosto pelo jornalismo de investigação?


Decidi que queria ser jornalista quando tinha 12 anos e costumava ver todas as noites o Jornal da Noite da RTP com a minha família e via os pivôs a falarem de tudo com muito conhecimento, não fazia ideia de que eles estavam a ler um teleponto. Eu achava que eram as pessoas mais fascinantes do mundo, que tinham todo aquele conhecimento memorizado, todos os dados e temas, e então foi nesse momento que decidi que queria ser jornalista. 

Mudei-me, fui para Nova Iorque, para a Columbia University Graduate School of Journalism, passado um mês de ter entrado na universidade, aconteceu o 11 de setembro e esse dia definiu o resto da minha vida. Fiz um direto para a SIC na altura. Durante o 11 de setembro era a única jornalista portuguesa que a SIC conhecia que se encontrava em Manhattan. Tinha pouquíssima experiência e nunca tinha feito um direto na minha vida, estava muito nervosa, mas lembro-me perfeitamente de ter ido para as ruas de Nova Iorque e de ver as primeiras pessoas a empunharem cartazes com o nome das pessoas que não conseguiam encontrar. Eram os familiares que estavam perdidos... foi um dia chocante para mim e para muitas pessoas, mas de facto foi nesse dia que decidi o tipo de jornalismo que queria fazer. Um jornalismo de investigação, onde eu queria ter acesso a estes mundos, tentar entender e contextualizar porque é que acontecimentos como o 11 de setembro acontecem. É essa atração que me leva a entrar no jornalismo de investigação.


É essa atração pelo jornalismo de investigação mais hard news e mais intenso?


Passado um ano depois do 11 de setembro mudei-me para a Síria e fiz a minha primeira reportagem como jornalista freelance. Foi sobre os mujaidin que estavam a passar para o Iraque durante a guerra do Iraque para lutar contra os americanos. Descobri uma realidade a que muito poucas pessoas tinham acesso e informações sobre esse mundo, quem eram essas pessoas. Foi nesse momento que também percebi que é exatamente isto, estes mundos subterrâneos de que pouco se conhece. É isto que me atrai no jornalismo e é o que quero fazer para o resto da vida. 


Destas personagens que se cruzam nos episódios da série Na Rota do 

Tráfico há alguma que a tenha surpreendido pela positiva como pessoa e como ser humano?


Sinceramente, acho que todas. São muito poucas as pessoas que entrevisto com quem não tenho uma certa empatia. De alguma forma, entendo-as. Em relação aos traficantes de drogas e de armas, sento-me e converso, fico a saber um bocadinho a vida deles, de onde vêm e quais as condições ou falta delas... A partir desse momento, tento sempre pôr-me na posição deles e é difícil não chegar à conclusão de que, naquele contexto de vida, provavelmente teria feito as mesmas opções se não tivesse tido as oportunidades que tive nesta vida. Se tivesse filhos em casa e não tivesse maneira de levar comida para casa e o único emprego na Terra em que vivo fosse o tráfico de drogas... (pausa). Sabe, acho que é muito fácil julgarmos as outras pessoas e muito mais complicado termos empatia e tentarmos entender a realidade dos outros. Eu penso que é muito mais importante tentar entender porque só através do entendimento é que iremos conseguir ter impacto e tentar acabar com estes mercados negros. 


Se quiséssemos utilizar aqui uma linguagem do cinema, há o lado negro da força destas pessoas que as atrai ou são o Darth Vader desde que nascem?


Não! Creio que ninguém nasce a querer ser criminoso. Considero que é a falta de oportunidades, a desigualdade e a pobreza que, na maior parte dos casos, não todos, leva as pessoas a uma vida de crime. Essa tem sido a minha experiência com as centenas de pessoas que tenho entrevistado nos mercados negros em todo o mundo. 


Tenta saber o que acontece a essas pessoas, às suas vidas depois de serem expostas num canal internacional como o National Geographic? 


Sempre. Nós fazemos tudo o que podemos para esconder a identidade das pessoas com quem falamos. E seguimo-las, não sempre, mas muitas vezes mantemos o contacto com quem entrevistamos. A nossa segurança e a deles é importante porque se lhes acontecer alguma coisa também nos pode acontecer a nós. Muitas vezes estamos a falar do cartel da Sinaloa, de grupos traficantes de armas, portanto continuamos em contacto com eles...


Tem alguma história que tenha acabado mal? 


Por exemplo, fizemos uma reportagem para a primeira temporada acerca do tráfico de armas e passámos um dia com três sicários pertencentes ao cartel da Sinaloa. Descobrimos que um foi morto passados seis meses de o termos entrevistado, não teve nada a ver com a nossa reportagem, e o outro pensavam que tinha sido morto mas estava desaparecido, foi sequestrado durante vários meses. Reapareceu tempos depois e entrou em contacto comigo e disse-me: «Lembras-te de mim? Sei que pensas que estou morto mas estou vivo.» (Risos.) 


Quando vê um filme que retrata estes temas na ficção diria que a realidade é pior ou retrata bem este paradigma do tráfico?

 

Trata muito bem, eu diria que a realidade é muitas vezes ainda mais estranha do que a ficção mais inacreditável, as coisas que nós encontramos e que testemunhamos em campo são inacreditáveis... o que nós conseguimos captar é ínfimo quando comparado com o que acontece na realidade. 

Nas filmagens estamos sempre a dizer que se houvesse um realizador de Hollywood que estivesse ali e que visse o mesmo que nós, iria querer fazer um filme sobre aquilo. Mas sim, a realidade é sempre mais interessante do que a ficção. 


Como é a vossa equipa de produção? 


No terreno, em filmagens, somos geralmente seis pessoas: o diretor, o produtor e as pessoas da equipa de câmara e eu. A par disso temos uma equipa de quatro a cinco produtores, em escritório temos uma equipa bastante grande, são à volta de vinte e cinco pessoas, mais a equipa da 

National Geographic que trabalha connosco, mas a viajar somos apenas seis pessoas. Cada temporada demora mais ou menos um ano e meio a realizar. 


Qual é a história que mais a surpreendeu das que passam em cada episódio? 


Na segunda temporada a supremacia branca, o carácter global da supremacia branca, o facto de existir uma network de todos estes grupos de supremacia branca que estão em contacto e a inspirar-se uns aos outros, a aprender uns com os outros. É um enorme risco que vivemos a nível global em termos de supremacia branca e que é francamente assustador. 


Portugal já está assim tão longe de si ou um dia gostava de voltar a trabalhar em Portugal? 


Portugal está sempre no meu coração e nunca longe de mim. A primeira coisa que digo a qualquer pessoa que conheço é «Olá, chamo-me Mariana», e a segunda é «Sou portuguesa». Aliás, adorava ir e fazer mais trabalhos em Portugal, ainda não tive a oportunidade mas espero que num futuro muito próximo isso se concretize. 


Qual o próximo grande desafio? 


Já demos início à produção da terceira temporada de Na Rota do Tráfico. 















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