ARISTIDES SOUSA MENDES

O Schindler Português



Tal como Oskar Schindler, o diplomata português Aristides de Sousa Mendes ajudou a salvar, com grandes riscos pessoais, milhares de pessoas das garras do regime nazi. 


Chanan Tigay 

DE Smithsonian Magazine




Era a segunda semana de junho de 1940 e Aristides de Sousa Mendes não saía do quarto. O cônsul-geral de Portugal em Bordéus, no sudoeste de França, vivia num grande apartamento com vista para o Garonne com a mulher e vários dos seus catorze filhos – todos cada vez mais preocupados. 


Aristocrata e bom vivant, Sousa Mendes adorava a família. Adorava vinho. Adorava Portugal e escreveu um livro enaltecendo a «terra de sonhos e poesia». Adorava cantar músicas populares francesas, em particular «J’attendrais», de Rina Ketti, uma canção de amor que, naquele contexto mutável da guerra, se tornou um hino pela paz. E Sousa Mendes também adorava a amante, grávida do seu 15.º filho. 


Era normal, mesmo na pior situação, encontrar algo positivo. Mas naquele momento, em que enfrentava uma decisão com terríveis consequências para a sua vida, fechou-se. Recusou-se a sair do quarto, até para comer. «Aqui a situação é terrível», escreveu o diplomata, na altura com 54 anos, ao cunhado. «E eu estou de cama, com um grave esgotamento nervoso.» 


As sementes do colapso nervoso de Aristides de Sousa Mendes foram plantadas a 10 de maio de 1940, quando Hitler levou a cabo a invasão da França e dos Países Baixos. No espaço de poucas semanas, milhões de civis tiveram que abandonar as suas casas, desesperados por fugir aos soldados alemães. 


Um representante da Cruz Vermelha em Paris chamou-lhe «o maior problema de refugiados civis da História de França». 


Os condutores, exaustos, perdiam o controlo dos veículos. As mulheres atrelavam-se a carroças próprias para cavalos, arrastando crianças e cabras. «Os donos de cães matavam os animais para não terem que os alimentar», lembrou Marie-Madeleine Fourcade, líder da Resistência Francesa. «Mulheres lavadas em lágrimas empurravam os idosos encolhidos nos carrinhos de bebé.» 


Lansing Warren, correspondente do New York Times e mais tarde preso pelos nazis, escreveu: «Num país já sobrelotado com refugiados das zonas de guerra, uma grande parte da Bélgica e dez a doze regiões de França, entre 6 a 10 milhões de pessoas arrastam-se pelas estradas em carros privados, camiões, de bicicleta e a pé.» 


Os refugiados «arrastam-se dia após dia, inexoravelmente, para sul, sem saber para onde», reportou. «Quão longe chegarão depende das circunstâncias, mas é garantido que, no final, todos ficarão encalhados.» 

Quando o governo francês fugiu de Paris e os soldados alemães ergueram a suástica no topo do Arco do Triunfo, os refugiados vasculharam o país em busca de vistos de saída. Muitos dirigiram-se à costa, na esperança de conseguirem apanhar um barco que os levasse da Europa. Outros afluíram às cidades ao longo da fronteira espanhola, desesperados por atravessar. 


Em Bordéus, a população mais que duplicou com os refugiados, para quem só restava uma opção: um visto para Portugal, neutral, que lhes permitia 

atravessar Espanha em direção a Lisboa. Aí tinham acesso a bilhetes de navio ou de avião para sair do Velho Continente.


Milhares de pessoas aglomeravam-se à porta do Quai Louis XVII, 14 – o edifício de cinco andares em frente ao mar que abrigava o Consulado Português e, no último piso, a família Sousa Mendes. A dois quarteirões, na Place de Quinconces, uma das mais maiores praças da Europa, os refugiados acampavam nos automóveis, caixotes e tendas.


Mais tarde, Sousa Mendes informaria o Ministério dos Negócios Estrangeiros português de que entre a massa humana estavam «estadistas, embaixadores e ministros, generais e outros altos funcionários, professores, homens de letras, académicos, artistas famosos, jornalistas... estudantes universitários, pessoas das organizações ligadas à Cruz Vermelha, membros de famílias influentes... soldados de todas as patentes e postos, industriais e homens de negócios, padres e freiras, mulheres e crianças a precisar de proteção». E, acrescentou, muitos deles eram «judeus já acossados e que procuravam escapar ao horror de novas perseguições».


À medida que os nazis se aproximavam, o acampamento entrou em frenesim. «O centro da cidade era um caos», escreveu o jornalista norte-americano Eugene Bagger, preso em França. Passou a noite de 17 de junho no carro e foi acordado quando as luzes da praça se apagaram inesperadamente. «E ouvimo-las... as bombas», recorda. «Contámos oito, numa sucessão rápida... a seguir as sirenes começaram a soar, estridentes, ao longe, e depois cada vez mais perto.»


Sousa Mendes ficou horrorizado com o sofrimento. Católico devoto, o cônsul suspeitava descender de conversos, judeus forçados à conversão séculos antes, nos tempos da Inquisição. Alguns dos refugiados tinham perdido os cônjuges, outros não sabiam dos filhos ou viram os entes queridos sucumbir aos bombardeamentos alemães diários.


O que muitos refugiados não sabiam era que sete meses antes o ditador português, António de Oliveira Salazar, tinha redigido aquela que ficou conhecida como Circular 14, na qual proibia os diplomatas de emitirem vistos à maior parte dos refugiados – em particular judeus, russos étnicos e qualquer outra pessoa considerada «apátrida».


Apesar de Salazar ter, tecnicamente, permanecido neutral, na verdade a «neutralidade» portuguesa foi fluida, dependendo dos acontecimentos. 


Naquele momento, com as forças nazis a destruírem a Europa, Salazar tinha relutância em provocar Hitler ou Franco, o líder fascista de Espanha.


À medida que, sob as suas janelas, a situação se degradava, Sousa Mendes convidou alguns refugiados idosos, doentes e grávidas para se abrigarem no seu apartamento, onde dormiam em cadeiras, cobertores e nos tapetes que cobriam o chão. «Até os escritórios do cônsul estavam repletos de dezenas de refugiados mortos de cansaço porque passaram dias e noites à espera na rua, nas escadas e, por fim, nos escritórios», relatou o sobrinho de Sousa Mendes, César, num depoimento ao Yad Vashem, o memorial ao Holocausto em Israel. «A maior parte daquelas pessoas só tinha a roupa no corpo.»


Uma noite, Sousa Mendes entrou num carro com motorista para observar a situação do lado de fora. Soldados franceses de capacete e com baionetas nas mãos mantinham a ordem. Ao aproximar-se da Grande Sinagoga de Bordéus, Sousa Mendes avistou um homem vestido com um grande casaco escuro e trespassado – era um rabino polaco chamado Chaim Kruger, que tinha servido numa aldeia na Bélgica de onde fugiu com a mulher, Cilla, e cinco filhos pequenos. Sousa Mendes convidou-os para o Consulado. Recebeu a família Kruger no seu próprio apartamento, mas declarou de imediato que nenhum judeu poderia receber visto.


No entanto, sem fazer alarde, o cônsul pediu autorização a Lisboa para emitir os vistos e, a 13 de junho, o Ministério respondeu: Recusados vistos. Desobedecendo aos superiores, Sousa Mendes passou, ainda assim, vistos à família. Kruger recusou: «Não sou apenas eu que preciso de ajuda, mas todos os meus companheiros judeus que correm risco de vida.»


De repente, o esforço altruísta de Sousa Mendes para ajudar um novo amigo, uma única família judia, revelou-se o que realmente era: uma escolha entre salvar-se a si ou milhares de pessoas – entre obedecer ao governo ou à consciência.


O dilema desestabilizou-o tanto que o atirou para cama, onde ficou durante três dias. Quando, por fim, se levantou, anunciou: «Vou emitir vistos a quem mos pedir. Mesmo que me dispensem, só posso agir como cristão, de acordo com os ditames da minha consciência.»


Yehuda Bauer, historiador israelita, chamou ao que se seguiu «a maior ação de resgate feita por um indivíduo durante o Holocausto».


Abrir a porta


Aristides de Sousa Mendes não nasceu para sofrer. Membro da pequena nobreza, era proprietário de uma luxuosa propriedade em Cabanas de Viriato, a aldeia no centro de Portugal, onde nasceu. A casa tinha duas salas de jantar, um salão de bilhar e um mezanino com as bandeiras das nações onde Sousa Mendes tinha servido. Todas as quintas-feiras, à sombra de uma estátua de Cristo que encomendou, ele e a mulher, Angelina, recebiam os pobres da aldeia para comerem uma refeição cozinhada pelos empregados da casa.


No entanto, era mau a gerir o dinheiro e muitas vezes tinha que pedir emprestado ao irmão gémeo, César. Enquanto Aristides era espontâneo e extrovertido, César era metódico e estudioso. Ambos estudaram Direito em Coimbra, a universidade de maior prestígio em Portugal, formaram-se em 1907 e exerceram por um breve período de tempo antes de entrarem no Ministério dos Negócios Estrangeiros.


No início da década de 1930, César chegou ao topo da hierarquia como ministro das Relações Exteriores de Portugal. Aristides, por seu turno, ocupou vários cargos diplomáticos – Brasil, Espanha, Guiana Britânica, São Francisco. Na Bélgica, recebeu o rei espanhol Alfonso XIII e Albert Einstein. Em Zanzibar, o próprio sultão apadrinhou o seu filho Geraldo.


Em setembro de 1938, Aristides e Angelina, com vários dos seus doze filhos sobreviventes – um filho faleceu, aos 22 anos, com uma rutura do baço e uma filha pequena soçobrou à meningite –, chegaram a Bordéus. Pouco depois, os professores de artes e música eram visita do seu apartamento.


Sousa Mendes iniciou um relacionamento com uma artista chamada Andrée Cibial, 23 anos mais nova. Conhecida na cidade pelos seus chapéus ostensivos, Andrée divertia o cônsul com o seu pensamento livre e tornaram-se amantes. 


Por esta altura, o governo francês, preocupado com o afluxo de refugiados judeus da Alemanha e de republicanos antifascistas fugidos à Guerra Civil Espanhola, tinha organizado uma série de campos de detenção e internamento para os abrigar. Em novembro de 1939, dez dias depois de Salazar ter publicado a Circular 14, Sousa Mendes emitiu um visto não autorizado a uma dessas pessoas, o historiador judeu Arnold Wiznitzer. Em março assinou outro visto, desta feita para um republicano espanhol, Eduardo Neira Laporte, ex-professor em Barcelona. Ambos os homens enfrentavam o perigo de prisão iminente nos campos franceses. Ainda assim, Sousa Mendes recebeu uma forte repreensão do Ministério dos Negócios Estrangeiros. «Qualquer nova transgressão ou violação sobre esta questão será considerada desobediência e implicará um procedimento disciplinar onde não será possível ignorar que o senhor cometeu repetidamente atos que implicaram advertências e reprimendas», lia-se.


Ao relatar a censura ao irmão, César, que ao tempo era embaixador de Portugal em Varsóvia, Sousa Mendes reclamou: «O Estaline português decidiu investir sobre mim como uma fera.»


Com as bombas ao longe a anunciarem a chegada iminente dos alemães, e com o seu governo inabalável na recusa em dar passagem segura aos miseráveis refugiados, Sousa Mendes deve ter compreendido as consequências que daí adviriam quando, em junho de 1940, abriu as portas e começou a assinar vistos em massa.


E, assim que começou, não mais parou. Assinou vistos para refugiados que tinham passaporte e para os que não o tinham. Eram milhares, a fila diante da sua mesa descia as escadas e chegava à rua. «Acrescentem a este espetáculo centenas de crianças que estiveram com os pais e com eles partilharam o sofrimento e a angústia», disse Sousa Mendes vários meses depois. «Tudo isto não poderia deixar de me impressionar enormemente.»


Com os nazis às portas de Bordéus, Sousa Mendes dormia pouco. Na pressa de atender a todos, a sua assinatura encolheu: de Aristides de Sousa Mendes para Sousa Mendes e, por fim, apenas Mendes. Devido ao medo de perderem os lugares na fila, os refugiados não saíam nem para comer ou beber. As lutas eram frequentes. 


A cada dia chegavam mais e mais pessoas, desesperadas por documentos. Os magnatas banqueiros Edward, Eugene, Henri e Maurice de Rothschild acorreram em busca de visto. Gala pediu visto para ela e para o marido, o artista Salvador Dalí: ele estava ocupado a construir um abrigo antiaéreo no 

jardim da casa que arrendavam perto de Bordéus. 












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