Doutores Palhaços

Doutores Palhaços,

vinte anos a fazer sorrir.



São conhecidos por Doutores Palhaços e há duas décadas que levam a boa disposição a crianças e jovens que se encontram em ambiente hospitalar. A Operação Nariz Vermelho, que começou por ser um sonho de Beatriz Quintella, é hoje um caso sério de conforto para quem se encontra numa situação de maior fragilidade.



Vera Lúcia Marques

FOTOGRAFIAS POR Paulo Alexandrino 




Primeiro dia de primavera. Pouco depois das dez da manhã o riso, a voz, as cantigas e as «palhaçadas» da Super Doutora Ginjação e da Doutora Domingas Xabregas já se fazem sentir nos corredores do Hospital Dona Estefânia, em Lisboa. Parecem brindar aos primeiros raios de sol que aquecem e ajudam à boa disposição. Mas este não é um dia diferente. O ritual cumpre-se, sem falta, todas as terças e quintas-feiras do ano. O hospital pediátrico é um dos 17 hospitais públicos do país que recebe regularmente a visita de quem pretende colocar um sorriso no rosto dos que, momentaneamente e por motivo de doença, se encontram num momento menos favorável. Os Doutores Palhaços, assim se chamam os profissionais da Operação Nariz Vermelho, «dotados de grande sensibilidade e capacidade de improviso, criam momentos mágicos que partilham com todos, fazendo esquecer os instantes menos bons que aqui podem ser vividos, aliviando alguma ansiedade e incerteza, tristeza ou dor, avivando a esperança e convertendo-os em momentos mais felizes», descreve Palmira Silva, enfermeira diretora--adjunta no Hospital Dona Estefânia.


Antes de partirem à conquista das unidades de internamento, há toda uma preparação prévia. Numa sala pequena que também transparece alegria, vestem as suas «fardas», maquilham-se, fazem aquecimento físico e vocal. Porque, apesar de serem palhaços, e como tal brincalhões, levam a sua missão muito a sério.


Assim que saem da sua sala, a «festa» começa. A interação não se faz exclusivamente com as crianças e os familiares, mas com todo o pessoal que diariamente presta serviço nas unidades de saúde: administrativos, contínuos, auxiliares, enfermeiros, médicos. A alegria dos doutores é contagiante e desde logo se abrem sorrisos, se dão abraços e também se dança. 


Neste dia a visita começa na Unidade de Adolescentes. Como é do protocolo, antes de avançar para os quartos a dupla de Doutores Palhaços (trabalham sempre em dupla) reúne com as enfermeiras de serviço para se inteirar da situação das crianças internadas: nome, dados clínicos e até o estado físico e emocional no momento, para perceber o tipo de abordagem a realizar. Esta partilha de informação «é essencial para os artistas começarem a interação com as crianças, quer seja através de uma música, um jogo, uma pequena conversa ou outro modelo que irão fazer com as crianças. Apesar de ter por base o improviso, a interação tem algumas linhas-mestras que são definidas nesse momento com as equipas de saúde», explica Fernando Escrich, diretor artístico da Operação Nariz Vermelho, que também veste «a pele» do Doutor Escrich, com a simpática especialidade de investigador na área da ciência neurótica e psicossocial.


As visitas são feitas de modo a não incomodar e nunca invadir o espaço da criança ou jovem hospitalizado. Um Doutor Palhaço nunca entra num quarto sem autorização. Estabelece primeiro o contacto visual e, mediante o sorriso do paciente ou dos seus familiares, aproxima-se com sensibilidade e respeito. Seja em que circunstância for, o Doutor Palhaço nunca força a criança a rir nem insiste em impor a sua presença.

A visita desenrola-se pelas várias unidades do hospital – cinco ou seis serviços a cada visita – e termina perto da hora do almoço. No final, os artistas escrevem um diário de bordo que posteriormente partilham com a restante equipa e a direção artística, o que permite identificar «o que correu bem, os momentos principais e os pontos em que podem continuar a evoluir», explica o diretor artístico.


QUEM SÃO OS DOUTORES PALHAÇOS


Nascida em 2002 do sonho da sua fundadora, Beatriz Quintella, de levar alegria através da arte do palhaço a quem mais dela precisa, a Operação Nariz Vermelho visita atualmente mais de 100 serviços pediátricos em 17 hospitais públicos: Hospital de São João, IPO do Porto, Centro Materno-Infantil do Norte, Centro Hospitalar de Gaia-Espinho, Hospital de Braga, Hospital Pediátrico de Coimbra, IPO de Lisboa, Hospital Dona Estefânia, Hospital de Santa Maria, Hospital de Santa Marta, Hospital São Francisco Xavier, Hospital de Cascais, Hospital Garcia de Orta, Hospital Beatriz Ângelo, Hospital Amadora-Sintra, Hospital do Barreiro-Montijo e Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão.


Ao serviço da IPSS estão 33 Doutores Palhaços, «artistas profissionais que fizeram a escolha de investigar a linguagem do palhaço e que podem vir de percursos bastante diversos como o teatro, a música, a dança e outras artes do espetáculo ou performativas», explica Fernando Escrich. Adicionalmente, estes profissionais têm formação específica e adaptam o seu repertório artístico para atuarem em contexto hospitalar, «visto que este é um ambiente que exige rigor e flexibilidade para seguir regras muito específicas».

Espírito de missão é um requisito imprescindível para se vestir a pele de um Doutor Palhaço, como explica o diretor artístico. Adicionalmente, «é importante ter boa capacidade de trabalho em equipa, uma vez que todos os artistas trabalham em duplas fixas nos hospitais que visitamos, e também é essencial o domínio da arte do improviso», revela.

O processo de recrutamento é realizado periodicamente, através de audições para novos artistas. «No início deste ano tivemos uma e vamos ter mais porque o nosso objetivo é reforçar a equipa», diz o diretor. Após a primeira audição, segue-se um período de conversas, entrevistas e estágio com a equipa, que tem lugar tanto em ambiente hospitalar como na «sala de treino». 

«Se o artista passar todas as fases, é integrado numa dupla ou trio e no calendário de residências nos hospitais. É nesta fase que o artista começa a definir o imaginário e identidade do seu palhaço, quer a nível de figurino e maquilhagem, quer de repertório, e a encontrar aquilo que o vai diferenciar dos outros.» As datas das audições podem ser conhecidas nas redes sociais da Operação Nariz Vermelho ou no respetivo site (www.narizvermelho.pt).


COMO TUDO COMEÇOU – 

UM SONHO TORNADO REALIDADE


Levar alegria através da arte do palhaço às crianças que estão hospitalizadas, longe de casa, da família e amigos e daquilo que consideram o seu espaço natural, num ambiente muitas vezes assustador, foi o sonho de Beatriz Quintella tornado realidade. 


A ideia surgiu-lhe quando leu um artigo sobre o trabalho dos palhaços que visitavam crianças hospitalizadas nos Estados Unidos. Criou uma personagem, a Doutora da Graça, e apresentou-a no Hospital Dona Estefânia com a sugestão de a levar junto das crianças para as ajudar a perder o medo e a ansiedade, e também contribuir para transformar com humor e alegria o ambiente hospitalar.

Desafio aceite, trabalhou oito anos sozinha, como voluntária, até oficializar o trabalho com a Operação Nariz Vermelho. Em setembro de 2001 convidou dois amigos, Bárbara Ramos Dias e Mark Mekelburg, para se juntarem a ela, e, graças a uma contribuição generosa de um parceiro, o projeto assumiu um caráter profissional, estabelecendo-se oficialmente em 2002 nos hospitais de Santa Maria, Dona Estefânia e Instituto Português de Oncologia de Lisboa.


A partir desse ano, à medida que o projeto ia crescendo e expandido para mais hospitais e serviços, houve também a necessidade de fazer crescer a equipa. «Os primeiros anos foram um misto de muita alegria e conquistas, mas também de muitas aprendizagens e frustrações, como qualquer projeto desta natureza mais experimental. Mas, fundamentalmente, foram de enorme sucesso e reconhecimento do projeto e, por isso, teve um crescimento muito rápido e positivo», refere Luiza Teixeira de Freitas, presidente da Operação Nariz Vermelho e filha de Beatriz Quintella, entretanto já falecida.


Nas mãos de Luiza Teixeira de Freitas está o futuro da instituição, que se pretende ampliado. «O nosso objetivo é que todas as crianças hospitalizadas em Portugal tenham direito à visita de um Doutor Palhaço. É chegar a todos os serviços pediátricos dos hospitais em Portugal. Gostávamos de já estar em várias cidades e regiões do país onde ainda não conseguimos chegar, como o Alentejo, o Algarve, a Madeira ou os Açores», confessa.


Por agora vão lutando para continuar a assegurar que os Doutores Palhaços não deixem de distribuir sorrisos. «A Operação Nariz Vermelho é uma IPSS e não recebe apoios do Estado. Financiamo-nos exclusivamente junto da comunidade para assegurar a sustentabilidade da nossa equipa e do trabalho que oferecemos 

aos hospitais nossos parceiros», explica a presidente. Por isso, ao longo dos anos houve necessidade de desenvolver várias fontes de angariação de fundos: «Contamos muito com a consignação do IRS, com donativos regulares de particulares, mecenas, empresas e instituições, as campanhas anuais, como a campanha do Dia do Nariz Vermelho e do Natal, ou a venda de merchandising na lojinha virtual.» 


VINTE ANOS A SUPERAR DESAFIOS

 

O vigésimo aniversário foi celebrado o ano passado com várias iniciativas, incluindo a exposição itinerante «Da Ponta do Nariz ao Sorriso de Uma Criança», que percorreu 17 hospitais, e o musical infantil Compasso de Palhaço – Pequena Sinfonia para as Horas Vagas, que depois de também ter percorrido os hospitais do país terminou com a apresentação no palco do CCB. Luiza Teixeira de Freitas considera que estes foram «vinte anos de crescimento sólido, de aprendizagem e de superação de desafios, nos quais apostámos na profissionalização da nossa equipa e no reforço dos laços com os profissionais hospitalares». 


Como força motriz para, pelo menos, mais outro tantos anos de existência, ficam, como confidencia a presidente da Operação Nariz Vermelho, «os sorrisos de cada criança com quem nos cruzámos ao longo destes vinte anos nos quartos e nos corredores dos hospitais. E não só delas, mas também dos seus familiares e de todos os profissionais hospitalares com quem temos o privilégio de trabalhar e aprender diariamente». 



-------------------------------------------------------------------------------------------




O impacto da presença dos Doutores Palhaços em números 

Um estudo levado a cabo pela Operação Nariz Vermelho e a Universidade do Minho junto de profissionais hospitalares revela que: 

- 92% das crianças afirmaram que se esquecem, por momentos, de que estão no hospital depois de estarem com os Doutores Palhaços; 

- 85% referem que as crianças colaboram mais com os tratamentos e exames; 

- 73% sublinham que as crianças apresentam maiores e/ou mais rápidas evidências clínicas de melhoria após o contacto com eles. 

Além disso, através da arte do palhaço, da brincadeira e do encontro com as crianças, é possível notar uma grande melhoria da comunicação entre os profissionais de saúde, as crianças e as suas famílias. As crianças passam a falar mais, a alimentar-se melhor e ficam mais dispostas a aceitar e contribuir com os tratamentos. 





Há vinte anos que os Doutores Palhaços marcam presença regular e assídua nos hospitais do país, levando a sua alegria e música às crianças e jovens que nelesse encontram. 



Fernando Escrich, o diretor artístico da Operação Nariz Vermelho.



Luiza Teixeira de Freitas, presidente da Operação Nariz Vermelho.



A abordagem aos pacientes é sempre feita com muito tato e respeito pela situação clínica de cada criança. 



Marta de Carvalho (à esq.) e Joana Egypto (à dir.) dão vida à Super Doutora Ginjação e à Doutora Domingas Xabregas. 


Share by: