TUBARÃO


O filme que mudou a indústria cinematográfica 


O medo nunca tinha sido tratado deste modo no cinema. Spielberg, no meio de um mar de angústias e dificuldades de rodagem, acabaria por criar o «filme-evento». Abriu uma galeria de conceito que trouxe depois as continuações e outras temidas personagens que desinquietaram plateias e deram má fama a Orcas, Anacondas, Piranhas e uma fauna interminável de sucedâneos que contam a mesma história, despertam os mesmos medos de Tubarão, que estreou há cinquenta anos para salvar Hollywood. 



Mário Augusto 

fotografias: Direitos Reservados



É um festival de gritos, mas não apenas isso. Jaws (que na tradução literal significa «maxila») foi um terror maior no seu processo de rodagem, criando no resultado final o conceito de «filme-evento», mudando a forma como os filmes eram promovidos e pensados para rapidamente se rentabilizarem. Foi o primeiro grande sucesso de verão, designação que ficou na indústria, um summer blockbuster, e ultrapassou em pouco tempo a faturação de 100 milhões, um recorde nos cinemas americanos. Um impacto resultante da estratégia de lançar o filme simultaneamente em centenas de cinemas com um forte investimento em marketing, em particular na televisão, rádio e cartazes espalhados por toda a América. 


Antes de Tubarão, os grandes estúdios estreavam os filmes só nas principais cidades, alargando depois a exibição ao resto do país sem ter que fazer cópias novas, indo rodando de cidade em cidade. Foi Spielberg quem sugeriu uma mudança de estratégia, e acabaram por gastar nesse plano arriscado e inovador tanto ou mais do que tinha custado a rodagem, que já tinha ultrapassado o orçamento inicial devido às constantes derrapagens no prazo e problemas com o tubarão mecânico. 


Spielberg acabou derreado, tinha apenas 27 anos, só dois filmes no curriculum, e deve ter dito mal da vida nos longos meses de filmagens. Terminou a rodagem a achar que a sua carreira estava arrasada depois daquele período extenuante, ficou deprimido e com muito stress. Acabou por não filmar a cena final como a tinha pensado por medo de ser demitido. O plano de produção contemplava cinquenta e cinco dias de filmagens, mas acabou por ter de continuar durante cento e cinquenta e nove dias. A equipa filmou entre a primavera e o outono de 1974, na pequena cidade de Martha’s Vineyard. Os contratempos e falhas constantes no plano de produção fizeram aumentar os custos: dos 4 milhões de orçamento inicial, no final gastaram-se 7 milhões. 


Após a tormenta da sua concretização, Tubarão acabaria por ter um forte impacto psicológico e cultural nas audiências, mudando a forma como o público passou a olhar o mar no cinema – muitos espetadores, depois de assistirem ao filme, desenvolveram um certo medo de nadar no oceano aberto e calmo. Esse receio surgiu em parte devido à sugestão criada pela banda sonora de John Williams que, com meia dúzia de notas, graves, acentua a tensão, a ameaça iminente e invisível, apenas pelo envolvimento sonoro. Com este filme apurou-se o conceito de fazer da composição musical um elemento narrativo. 


Tubarão representou, assim, uma evolução na linguagem do suspense, criando medo de um modo mais eficaz, sem mostrar a personagem causadora desse susto constante, o que hoje é visto como um conceito revolucionário para a época. Há nisso a genialidade de Spielberg, ele na verdade quis apenas encontrar soluções eficazes para as dificuldades técni-

cas com que se deparava e o resultado faz com que, ainda hoje, seja considerado um dos filmes mais bem dirigidos e mais tensos da história do cinema.


Tormentas e caprichos mecânicos


As dificuldades e frustrações do momento de rodagem levaram a soluções de recurso: os problemas técnicos com o tubarão mecânico, controlado por um sistema hidráulico, nunca funcionava corretamente, foram construídos três tubarões, avariavam todos. Como filmavam no mar, a água salgada danificava os mecanismos, empancando o bicho gigante, causando atrasos constantes no processo de filmagens. Foi isso que obrigou o realizador a arranjar soluções conceptuais alternativas de maneira a usar o tubarão o mínimo possível – necessidade que, ironicamente, tornou o filme ainda mais tenso e eficaz na gestão do medo, a sugestão do que não se vê!...

Os três tubarões mecânicos avariavam em ação, ficavam imóveis de boca aberta. O peixe gigante foi batizado Bruce, isso por causa do nome do advogado de Spielberg, um tal Bruce Ramer. 


Naquela altura, Hollywood passava por uma grande crise, faltava vitalidade aos estúdios, funcionavam indoor, construindo os cenários em Los Angeles. Se Tubarão seguisse essa prática, as cenas em mar alto eram filmadas nos gigantes tanques d’água dos estúdios, mas Spielberg insistiu em filmar tudo no oceano, em Martha’s Vineyard (Massachusetts). 


Além dos problemas com os tubarões hidráulicos, a ondulação levava a que a equipa ficasse permanentemente enjoada, tinha dificuldade em estabilizar e posicionar as câmaras, as luzes e microfones. Muitas vezes o enquadramento estava perfeito e, de repente, entrava lá ao fundo um veleiro que não constava da cena. E foi isso que arrastou prolongadamente a rodagem, estoirou o orçamento e levou a um esgotamento do jovem realizador. No fim de contas, foi o maior sucesso de bilheteira da história até ser superado por Star Wars dois anos depois, em 1977.


O lusodescendente «pai» do tubarão  Quando Spielberg juntou a equipa para a rodagem sugeriu que o design de produção fosse criado pelo lusodescendente Joe Manuel Alves, nascido numa das cidades mais portuguesas da Califórnia, San Leandro. Trabalharam juntos nos dois primeiros filmes do realizador e voltariam depois a colaborar em equipa na criação de Encontros Imediatos do Terceiro Grau. Joe Manuel Alves foi dos primeiros a ler o manuscrito Jaws, de Peter Benchley, ainda antes da edição, quando foi parar aos escritórios de produção de Richard Zanuck e David Brown. Nas primeiras reuniões com Spielberg pediram a Joe Alves que fizesse os primeiros esboços. 


Hoje com 89 anos, o designer, filho de açorianos, num recente livro de memórias recorda os primeiros esboços para o filme: «Fiz uns desenhos de um tubarão em grande plano... e depois esbocei algumas das cenas principais, bem como uma continuidade para o terceiro ato do filme. Naquela altura, baseei os meus esboços em Moby Dick.»


Coube também a Joe Alves a tarefa de encontrar um lugar certo para as filmagens, em pleno inverno de 1974. Nessa pesquisa, ele correu todas as pequenas cidades costeiras da costa leste, desde Long Island até Nantucket. Como estava muito mau tempo não conseguia chegar ao mar, e assim foi seguindo até Martha’s Vineyard. Uma praia calma, o cenário era bom, embora na altura o areal estivesse coberto de neve. Um ambiente típico da Nova Inglaterra, com as casas alinhadas com uma arquitetura georgiana e cercas brancas a separar o jardim. Ainda segundo as palavras do lusodescendente: «... pareceu-me o lugar agradável e organizado para ser perturbado por tubarões».


O problema foi que as pessoas que lá viviam queriam calma, não lhes agradava que andasse por ali gente do cinema a desestabilizar o vilarejo. Não muito longe viviam os Kennedy e outras celebridades, como o jornalista Walter Cronkite. Foram negociações demoradas, mas um cheque chorudo passado à autarquia permitiu transformar Martha’s Vineyard em Amity Island.


Os tubarões reais, os maiores, têm cerca de 3,8 metros. Joe Alves, para o tornar mais assustador, aumentou o tamanho até aos 7,5 metros. 

Escolhido o lugar de filmagens, foi o tempo de passar horas com Spielberg a desenhar cena a cena, isto além de ter andado à procura de uma oficina de adereços mecânicos que lhe construísse os tubarões para a rodagem. Mal sabiam eles que o tubarão Bruce, nas entranhas de rodas dentadas e cabos escondidos, seria uma personagem caprichosa nos desempenhos ao ponto de se tornar a produção cinematográfica mais complicada da época.


A origem do livro


O autor do best-seller Tubarão, Peter Benchley, cresceu numa família literária. O pai era o romancista Nathaniel Benchley, o avô era o ator, escritor e humorista Robert Benchley, famoso no meio artístico de Nova Iorque. Antes de escrever o livro, Peter Benchley foi jornalista, repórter do Washington Post e editor da Newsweek. O seu livro com pouco humor, muita ação e aventura, resultava de uma ideia que apanhou num recorte de jornal sobre um homem que capturou um grande tubarão-branco com 180 quilos ao largo de Long Island. Leu a notícia e ficou a congeminar uma história sobre um tubarão, numa improvável praia no norte atlântico dos Estados Unidos, que ficaria por ali a assustar e a comer banhistas.


A preparação para a escrita começou em junho de 1971, quando o jornalista entregou um esboço de quatro páginas à editora. Deram-lhe um adiantamento de mil dólares, com o compromisso da entrega dos quatro primeiros capítulos até 15 de abril de 1972.


Ele pesquisou tudo sobre tubarões em livros, revistas e literatura oceanográfica. Entrevistou pescadores, os que ajudaram na escrita da personagem Quint. O rascunho final do livro foi entregue em janeiro de 1973. 


Os produtores David Brown e Richard Zanuck leram o manuscrito e perceberam o potencial da história para um filme de médio orçamento, mas mesmo assim deram-lhe 150 mil dólares pelos direitos e mais 10% dos lucros líquidos caso o filme fosse produzido. Nas contas dessa compra em pré-lançamento, o autor ainda receberia mais 50 mil dólares por conta do desempenho da obra na lista de best-sellers do New York Times. Nessa altura, ainda não tinha o livro saído para as bancas e já o diretor de publicidade da Universal Pictures, Clark Ramsay, estava a trabalhar num plano de promoção. Como ele disse numa entrevista na época: «Livros de sucesso dão origem a filmes de sucesso e a nossa primeira preocupação era ajudar o Benchley a colocar o seu romance no topo da lista dos mais vendidos.» 


Pouco antes da estreia do filme, só a edição de bolso já tinha vendido três milhões e meio de exemplares. Curiosamente, o país onde foi vetada a sua publicação foi a África do Sul, proibido por excesso de sexo e violência. Na América também foi retirado das bibliotecas das escolas de Dallas, no Texas.


Já na fase de escrita do argumento, o escritor tinha uma discordância com Spielberg por causa do final. Benchley achava que nenhum espetador acreditaria na morte do tubarão por abocanhar uma botija de ar comprimido. Foi a primeira discordância de ambos. A relação entre o romancista e o realizador iria azedar mais quando Spielberg tornou públicas as suas reservas sobre a qualidade do livro e a consistência das personagens. Benchley respondeu na imprensa com mais críticas sobre o jovem Spielberg, ao referir aos jornalistas: «Ele precisa de trabalhar melhor as personagens. Percebe muito pouco do tema... Não tem conhecimento da realidade, apenas dos filmes. É um jovem especialista em filmes de série B. Quando precisa de tomar decisões sobre os pequenos detalhes do comportamento das pessoas, recorre aos clichés dos filmes dos anos 40 e 50. Vamos ver no final como se safa... Spielberg será um dia conhecido como o maior realizador assistente de Hollywood.» 

O escritor iria um dia às filmagens para uma participação especial numa cena como repórter de televisão na praia. As relações entre ambos foram tensas apesar dos esforços de ambos para passar uma imagem de respeito mútuo. 

Tudo se complicava de novo quando Spielberg, em plena rodagem, cheia de stress, dá uma entrevista na qual refere: «Se não fizermos este filme melhor do que o livro, teremos problemas.» Acabou por enviar uma nota de desculpas ao escritor. 

Quando o filme estreou com grande sucesso mundial, todos assumiram que as alterações feitas ao romance eram uma mais-valia para a história e, com o êxito do filme, o livro acabou meio esquecido nas diferenças narrativas que os separam. 

Tubarão ganhou o seu lugar na cultura pop americana. Não se pode ver apenas como um filme de desastre numa época de transição, é precursor do género cinema slasher que marcou toda a década de 1970. 




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A ironia do destino foi o que ditou o encontro de Spielberg com o manuscrito do livro Tubarão. Ele estava de visita aos produtores nos estúdios da Universal e viu na secretária um monte de folhas A4 com a legenda Jaws. Ficou curioso. Ele andava a discutir um novo filme, uma produção de época, comédia musical, Lucky Lady, com Paul Newman. O ator mais tarde cederia o lugar no elenco a Gene Hackman, enquanto Stanley Donen ficou com a realização depois de Spielberg saltar fora por achar graça à ideia de realizar Jaws.

Ele poderia escolher, os críticos tinham gostado do seu anterior filme The Sugarland Express – Asfalto Quente apesar da fraca adesão do público. Por esse filme, a opinião da temida jornalista de cinema americana, Pauline Kael, foi de que Spielberg talvez fosse o Howard Hawks de uma nova geração. E Billy Wilder comentou: «O realizador desse filme é o maior talento jovem que surgiu nos últimos anos.»

Tinha razão o velho Wilder. A contratação de Spielberg para realizar Tubarão foi anunciada a 21 de junho de 1973. Diria ele mais tarde que a preparação para a realização e escrita foi a melhor parte, o resto do tempo foi um sofrimento constante e muito molhado, mas valeu a pena, caso contrário não continuaria a falar do filme cinquenta anos depois.

O êxito foi imediato, os estúdios Universal, mal se aperceberam do fenómeno, lançaram rapidamente a marca nos mais variados produtos licenciados, desde t-shirts a joias com dentes de tubarão, toalhas de praia e até tampas de sanita com um dente de tubarão. No parque temático dos estúdios em Los Angeles, tentaram até vender fetos de tubarão em frasquinhos com formol. É claro que gerou polémica, e em boa altura os ativistas dos direitos dos animais conseguiram impedir a venda de tão estanho souvenir. 


Quem ficou famosa por causa do filme foi a atriz e dupla de cenas de ação, Susan Backlinie, a primeira vítima do tubarão na cena de abertura, dura pouco a sua participação. A atriz faleceu aos 77 anos, em maio de 2024, e embora tenha participado em dezenas de outros filmes ao longo de toda a vida, todos queriam saber pormenores da famosa cena.


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