Uma História da Humanidade em Ferrugem

UMA HISTÓRIA DA HUMANIDADE

EM FERRUGEM

No lixo há beleza – esperança pelo que pode ser renovado.



Dorothy Woodend DE THE TYEE





A RELAÇÃO ENTRE as pessoas e o lixo é curiosa. Um documentário de 2022 intitulado Scrap mostra como estas duas coisas estão estranhamente entrelaçadas.

Quando a realizadora do filme, Stacey Tenenbaum, encontrou a fotografia de um cemitério de aviões mesmo nos arredores de Moscovo, a qualidade fantasmagórica do local levou-a a perguntar-se o que acontecia a objetos semelhantes quando já não eram úteis.

O filme está repleto de prazeres visuais. Os espetadores pairam ao longo de elétricos que já não circulam e espreitam as carroçarias em decomposição de carros potentes avistados no meio de musgo e líquenes. Mas uma mensagem mais dura subjaz às imagens dançantes: o caminho de volta da irrelevância e obsolescência exige trabalho – muitas vezes difícil, sujo e perigoso.

Como interagimos com aquilo que deitamos fora? O filme mostra uma abordagem alternativa ao ciclo de deitar fora os objetos quando chegam ao fim da sua vida ativa. Na verdade, os objetos velhos podem ser transformados em algo não apenas velho como belo.

Tome-se como exemplo a icónica cabine telefónica vermelha, familiar para qualquer anglófilo. Na década 1980, quando Tony Inglis, na época dono de uma empresa de camionagem em Inglaterra, conseguiu o contrato para remover as cabines telefónicas que estavam deterioradas, pensou: «Não podemos simplesmente deitá-las fora.»

Por isso, começou a repará-las. Ao longo do tempo, comprou mais de 2000 cabines desativadas e decidiu dar-lhes uma vida nova raspando décadas de tinta empolada, substituindo os vidros partidos e devolvendo-lhes lentamente a dignidade e a elegância. Agora, décadas depois, as cabines recondicionadas estão a ser usadas para várias funções – desde bibliotecas em miniatura a quiosques de café, passando por postos de equipamento de desfibrilhação. 


Há algo de profundamente tranquilizador, até redentor, em ver uma pessoa dedicar-se ao ato do restauro com cuidado e precisão. Se um objeto antigo e caquético pode ser trazido de volta aos seus dias brilhantes de glória, os humanos também podem ser devolvidos a um estado de plenitude.

O filme é tanto sobre os objetos como as pessoas que os amam. Veja-se Ed Metka, de Kenosha, no estado americano do Wisconsin. Na década de 1980, o engenheiro civil reformado começou a comprar elétricos que deixaram de ser usados em diversas cidades da América do Norte, incluindo Toronto, para os recondicionar e vender.


Em criança tinha um fascínio por elétricos e observava os operadores com tal atenção que, aos 5 anos, imaginava que seria capaz de conduzir os trolleys. «Era fascinado pelos elétricos, pela sua aparência e o som chocalhante.» Hoje, alguns dos elétricos que comprou regressaram ao ativo. «É muito satisfatório vê-los a andar de novo», confessa Ed.

A tenacidade do metal, que se mantém muito depois dos frágeis corpos humanos partirem, é o tema das esculturas de metal do artista John Lopez, do Dakota do Sul. Ele solda velhas peças de tratores, pedaços de maquinaria e correntes compridas e ferrugentas para fazer figuras em tamanho maior do que o natural de búfalos, tigres e cavalos de tiro. Numa espantosa homenagem ao seu falecido pai, até criou uma antiga árvore retorcida coberta por delicadas pétalas metálicas cor-de-rosa. Como Lopez explica, parte da sua inspiração vem de um antigo hábito agrícola no Dakota do Sul: arrastar as peças de equipamento avariado até ao cimo das colinas. «Traz muitas memórias dos tempos antigos», refere Lopez. «Tem significado, muito significado.»


Recortadas na paisagem, as esculturas erguem-se como dinossauros, marcas de um tempo e um lugar – e uma vida de trabalho. A sua intenção era que que as relíquias ganhassem uma nova vida para serem motivo de conversa e deste modo continuarem a ser úteis.


Noutra parte do mundo, as máquinas abandonadas tornam-se casas de família e uma fonte de rendimento. Mesmo a leste de Banguecoque, na Tailândia, Fah Boonsoong, os filhos e netos vivem num avião Jumbo – apenas um dos muitos espalhados num campo. Os turistas pagam para tirar fotografias com os aviões abandonados. 

Enquanto as crianças saltam para cima e para baixo das asas do avião, a avó fala de ser cuidadora do cemitério de aviões. Mas não gosta da palavra «cemitério», insistindo que a comunidade é vibrante, cheia de risos e crianças que brincam. A ressurreição também é o foco do arquiteto Tchely Hyung-Chul Shin, que trabalha na Coreia do Sul e em França. A sua empresa de arquitetura reutiliza secções de antigos petroleiros e cargueiros para fazer igrejas e outras estruturas. Libertos da indignidade da ferrugem e transformados em vastos espaços abobadados, os cascos dos navios, canelados como o interior de uma baleia, tornam-se objetos de uma beleza etérea.


Contudo, estas transformações radicais não são fáceis. Cortar os navios enormes em todos os seus componentes é um trabalho duro, agreste. Os navios são provenientes de todo o mundo, mas a reconstrução tem lugar principalmente em Espanha, onde uma equipa internacional de construtores navais os desmonta. O filme mostra cenas extraordinárias dos gigantes a serem puxados para fora de água, virados ao contrário e cortados em secções. 

Como Shin explica, quando limpa décadas de ferrugem acumulada da secção de um casco sente uma ligação àqueles velhos guerreiros marinhos como se fossem um membro da sua família. «Há muita emoção quando vejo estas peças e o barco. É como cuidar de um amigo ou de um progenitor.» 

Entretanto, nos Estados Unidos as carroçarias decompostas de velhos carros emergem da paisagem de White, na Geórgia, como se fossem um novo tipo de vegetação. Espalhados pelos 14 hectares do local – conhecido como Old Car City –, mais de 4000 veículos têm estacionamento permanente, e da obscuridade emergem visões curiosas. Por cima de um roadster da década de 1950 coberto de agulhas de pinheiro espreita uma boneca abandonada. Alguns veículos estão ali há tanto tempo que as árvores cresceram dentro deles. É uma espécie de beleza e um pouco estranho. 

O proprietário, Dean Lewis, vê o ferro-velho de White como uma espécie de museu. «É arte, natureza e história», explica. Lewis herdou o local dos seus pais, que o começaram a usar como armazém de carros usados em 1931, mas desde então evoluiu para algo semelhante a um reino da decadência. 

Desde avisos pintados à mão onde se lê «O Sentido da Vida é Dar Sentido à Vida» até aos muito usados caminhos de terra abertos no meio dos bosques, o lugar é uma atração distintivamente rústica. A constelação de ferrugem automóvel oferece uma grande beleza, padrões e cores pontilhados nos exteriores metálicos como um quadro modernista. É ao mesmo tempo encantador e triste. As esperanças e ambições de outra geração a desintegrarem-se lentamente em ferrugem e pó. Noutras partes do mundo, a escala de cultura descartável toma proporções épicas. Em Deli, os telemóveis e televisões velhos são desmanchados por trabalhadores que ganham a vida a separar peças de tecnologia que se tornou lixo. A fotógrafa Saumya Khandelwal regista as vidas destes trabalhadores, e as suas imagens têm como objetivo a necessidade de fazer algo no meio de um colosso de desperdício. «Quando há algo que me preocupa, a única coisa que consigo fazer é fotografá-lo.» 


O rendilhado de nova vida e decomposição retratado no filme Scrap oferece uma interessante confluência de forças opostas. A pura magnificência de lixo brutal transformado em algo belo, funcional, é uma lembrança de que, com cuidado e amor, quase tudo pode regressar de um quase fim. 





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