ANDRÉ CARRILHO

 «Tenho de saber falhar para fazer bem!»

     Tem mais de trinta anos de carreira. Considera-se um ilustrador, é dono de um talento que há muito atravessou fronteiras e tem trabalhos publicados em revistas e jornais de renome mundial. Viveu nos Estados Unidos, onde é considerado um dos melhores do mundo. Mas prefere a vida calma que tem em Lisboa. 



Mário Costa

Ilustrações: André Carrilho





«Não me importo que me considerem um ilustrador, mas acho que qualquer classificação é redutora. Eu diria que sou um desenhador, mas mesmo assim também não é o correto porque, entretanto, também sou autor. Eu diria que sou um autor gráfico, ou autor visual. Mas não me importo com a definição de ilustrador, que é mais abrangente e inclui ser cartunista.»



     A afirmação é de André Carrilho, 47 anos, mais de trinta de carreira e reconhecido em todo o mundo pelas suas fantásticas caricaturas. As definições e os rótulos sociais, que teimam em catalogar tudo e todos, poderão chamar-lhe artista plástico. Mas André Carrilho é muito mais do que isso: é o caricaturista que mostrou o ator Peter O’Toole com um traço esguio e belo na capa do jornal inglês The Independent on Sunday; o desenhador que concebeu o painel do tamanho de uma parede que serviu de pano de fundo a uma festa pós-cerimónia dos Óscares da revista Vanity Fair, em Los Angeles, mas também ilustrador de livros e autor do Spam Cartoon, na RTP. 


     Uma carreira e um talento que se evidenciou ainda na infância, ou não viesse ele de uma família de arquitetos: «Em pequenos temos sempre aquela angústia de saber o que se vai ser, que profissão escolher, mas quando dizia que queria desenhar respondiam-me que isso não era profissão. Eu sempre tive jeito para o desenho, mas no início manifestava-se com uma constante frustração. Porque quando uma criança sabe reconhecer um bom desenho e não tem capacidade para o fazer, o que acontece é ficarmos frustrados porque achamos que não valemos nada. O meu talento, se é que tenho, foi sempre acompanhado por uma grande dose de frustração e a consciência de que não era capaz de fazer aquilo que eu queria», revela em entrevista à Selecções do Reader’s Digest.

Valeu, nessa fase de incerteza, dúvida e procura, o apoio da família, principalmente da mãe, que cedo reconheceu o talento do filho para o desenho: «A minha mãe sempre me apoiou, sempre achou que tudo o que eu fazia era muito giro, e também tios que desenhavam e que incentivavam. E para mim o desenho sempre foi possível como modo de vida, fosse lá como fosse. Para mim não era totalmente afastado da realidade poder viver do desenho, embora a ilustração não fosse algo que na altura se esperasse que se tornasse a minha profissão. Mas poderia ser arquiteto, designer, fazer banda desenhada, aplicar o desenho de muitas maneiras», confidencia. 


     Com vários arquitetos na família – desde logo o pai e a mãe –, seria previsível que acabasse por enveredar pela mesma área. E André Carrilho esteve quase dar esse passo, mas um livro oferecido pela mãe acabou por lhe definir o destino: «Estudar arquitetura foi a primeira opção que tive, até porque toda a gente me dizia, principalmente os meus familiares – e porque era o que lhes tinham dito a eles –, se queres ser artista vai para arquitetura porque ao menos isso é uma profissão e consegues ter um emprego. Mas na transição para a arquitetura descobri o design gráfico graças à minha mãe. Ela achava que eu não sabia muito bem o que escolher como profissão, e ela que não sabe nada de design gráfico foi para as livrarias à procura de livros que achasse interessantes para eu ver. E comprou-me um livro de uma das maiores sumidades do design gráfico da década de 1980 e 90, que é o Neville Brody, sem saber quem ele era», conta, entre risos, à nossa revista. 


     O livro e traço de Brody acabariam por marcar a opção de ir estudar design gráfico na Faculdade de Belas-Artes. E foi por essa altura que começou a desenvolver mais trabalhos na área do cartunismo, cujos primeiros traços iniciou quando estava no 12.º ano: «Eu gostava muito de cartunes e de caricatura e praticava muito em casa. E quando fui para Macau estudar, porque a minha mãe foi para lá trabalhar, encontrei dois amigos, o João Lam e o Gonçalo Viana, que estavam a preparar um portefólio para apresentarem num jornal com a ideia de começarem a publicar os trabalhos deles. Conseguiram o trabalho e eu fui a um outro jornal, o Ponto Final, e arranjei um trabalho de cartune semanal. Foi o meu primeiro trabalho pago», salienta André Carrilho. Estudava à noite e passava os dias a observar, a experimentar, a ver tudo à sua volta, a alicerçar a sua identidade enquanto desenhador.


     Após a conclusão dos estudos em Macau, André Carrilho rumou a Lisboa para estudar na Faculdade de Belas-Artes e acabou por estar sem trabalhar durante dois anos, até que em 1993 surge no mercado o jornal satírico O Fiel Inimigo, ao estilo do francês Charlie Hebdo, e onde André voltou à publicação de cartunes, com o amigo João Lam: «Um tio meu conhecia as pessoas desse jornal e levou o meu portefólio, que incluía uns desenhos que eu fazia com o João Lam nas aulas de Geometria Descritiva. Eu era dos melhores alunos dessa disciplina e, como a aula estava pensada para pessoas que não gostavam daquilo, aborrecia-me porque fazia os exercícios rapidamente e ficava parado. Para ocupar o tempo fazia desenhos, e foi nessa altura que eu e o João Lam inventámos o Kama Sutra para obesos, com figuras estranhas. O diretor do jornal achou piada e começámos a publicar essas histórias. Foi esse o meu primeiro trabalho na imprensa em Portugal», diz à nossa revista. 


     Em simultâneo, André Carrilho começou a fazer caricaturas para o mesmo jornal, e depressa ficou conhecido como caricaturista no meio editorial e gráfico nacional: «A caricatura era, e é, uma área mais especializada da ilustração e nem toda a gente sabe fazer bem. Hoje em dia está a cair em desuso, principalmente no mundo anglo-saxónico, mas sempre foi uma coisa especializada. Para mim sempre foi natural fazer caricatura. Se calhar para mim a caricatura vem antes do desenho», explica à Selecções do Reader’s Digest.


     André não tem propriamente uma disciplina ou uma metodologia, tudo depende do tipo de trabalho que lhe é pedido, dos prazos para o fazer e da inspiração. E nem sempre corre bem à primeira. É preciso experimentar, uma e outra vez, fazer e desfazer. É preciso saber falhar: «Eu tenho de saber falhar para fazer bem. É preciso falhar imenso para conseguir chegar a algum lado. Em qualquer percurso profissional de sucesso, se não se falhou não se chegou lá. As maiores lições com que vale a pena aprender é com os falhanços. E com alguns sucessos», admite entre risos. 

Dono de um estilo e traço inconfundíveis, admite que, quando começou a carreira, copiava os «mestres», como Augusto Cid, António, Vasco. E foi a transição do século que lhe desenvolveu o estilo, também com recurso às novas tecnologias: «Não sou imediatista. Tenho de estar sozinho em casa e saber que posso falhar. O computador acelera esse processo e permite combinar coisas improváveis e visualizar o trabalho final.»


       Tornou-se conhecido do grande público quando começou a fazer caricaturas de políticos no extinto semanário Independente, depois de ter dado nas vistas no jornal Público com uma série de caricaturas de grandes jogadores que passaram pelos europeus de futebol: «O Independente pediu-me um portefólio de alguns políticos, entre eles o Guterres. Apliquei-me, fi-los com afinco. Era o meu primeiro trabalho profissional para um jornal de referência.» 


     As voltas do destino levaram-no de volta ao jornal Público, pela mão de Jorge Silva, então diretor de arte no Independente e que se mudou para este diário, levando vários ilustradores consigo. André foi um deles.

E foi ainda Jorge Silva quem lhe deu um empurrão na internacionalização da carreira ao ver trabalhos publicados no The Independent on Sunday e no The New York Times Book Review. «O Jorge Silva era responsável pelos suplementos Ípsilon e Mil Folhas do Público. Como no Mil Folhas só usavam ilustrações, fiz uma série sobre músicos de jazz americanos e o Jorge enviou esse trabalho para um concurso nos Estados Unidos. Acabei por ganhar o prémio Golden Award na categoria de portefólio de ilustração. Uma das pessoas do júri pertencia ao jornal The Independent on Sunday e isso serviu de montra para o meu trabalho em termos internacionais», refere André Carrilho. 


      Durante treze anos o ilustrador português colaborou com o jornal britânico, uma parceria que começou com uma caricatura do ator Peter O’Toole. E foi também graças a essa visibilidade que André Carrilho fez um dos seus mais conhecidos trabalhos: o painel do tamanho de uma parede, com ilustrações de atores de Hollywood, que serviu de pano de fundo a uma festa pós-cerimónia dos Óscares da revista Vanity Fair, em Los Angeles. «O Brendan Carter, editor da Vanity Fair, foi a Londres e viu uma das edições do The Independent on Sunday com uma ilustração minha. Gostou, entrou em contacto comigo e começou a pedir-me trabalhos. E logo a seguir comecei a fazer trabalhos para o The New York Times. Isso abriu-me outras portas, como a Los Angeles Magazine ou, mais recentemente, a inglesa New Statesman.» 

       

      Seria razoável que, sendo um artista do mundo, vivesse numa das cidades onde estão instaladas algumas das grandes publicações. André Carrilho experimentou viver alguns meses em Londres e em Nova Iorque mas prefere a vida de Lisboa. «O mito de Nova Iorque ou de Los Angeles. Num país tão grande, é normal trabalhar-se por e-mail sem se chegar a conhecer a pessoa que o contratou. Então, se é para isso, prefiro viver no meu país. A qualidade de vida é muito melhor.»   










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