Fátima Lopes- A Entrevista

"Tudo o que sonhei aconteceu

de alguma maneira"

Estilista comemora trinta anos de carreira 



TEXTO: Vera Lúcia Marques 

Fotos: Paulo Alexandrino e coleção privada de Fátima Lopes 





Fátima Lopes festejou em setembro trinta anos de carreira com um grandioso desfile, o maior de sempre no país, que teve lugar no Pavilhão de Exposições do Instituto Superior de Agronomia, na Tapada da Ajuda, em Lisboa. Personalidade de Confiança na Moda das Selecções do Reader’s Digest, a estilista abriu-nos as portas do seu «quartel-general», no Marquês de Pombal, para recordar o caminho percorrido ao longo destas três décadas de carreira: os momentos felizes, os difíceis, mas também as críticas que ainda hoje faz ao modo como se olha para a moda nacional. Confidencia-nos como a pandemia veio mudar a sua maneira de olhar para a vida e que continua com a paixão pela moda e a garra que sempre a caracterizou, personificadas na loja que acaba de inaugurar em plena Avenida da Liberdade.

 

Selecções do Reader’s Digest: Trinta anos depois a Fátima Lopes continua a brindar-nos com novidades. Desta vez a abertura de mais uma loja na principal artéria da moda da capital. 


FÁTIMA LOPES: Tendo em conta o grande crescimento do mercado do turismo em Lisboa, achei que fazia sentido abrir uma loja em plena Avenida da Liberdade. Pela localização é uma loja mais virada para o turismo, enquanto esta, apesar de a apenas escassos metros de distância, ficar mais reservada para o mercado nacional. São duas lojas que se complementam porque estão dirigidas a targets diferentes. 


Mas não é só pela loja que passam as novidades. Há anos que estrutura um projeto diferente e maior… 

Sim, é um projeto de vida, um museu da marca. Ao longo destes trinta anos nunca vendi uma única peça dos desfiles, quase todas estão guardadas para serem expostas nesse museu. É um sonho que tenho há muito tempo, não sei quando irei concretizá-lo, mas a minha vida tem sido feita de sonhos. Acho que tudo o que sonhei me aconteceu de alguma maneira. Tudo o que sempre fiz na vida foi desejar, trabalhar para isso e concretizar. E este é mais um sonho. 


Será, portanto, um museu com as suas «obras de arte»? 

Sim, sempre tive esta dualidade entre o espetáculo e o comercial. Antigamente as pessoas não entendiam. Hoje acho que já entendem que as peças que apresento em palco são mero espetáculo, que depois serão produzidas para venda. Por exemplo, uma peça transparente na passerelle será depois vestida com outra peça por baixo ou transformada. As de «espetáculo» estão destinadas ao museu. 


Depois de todo o trajeto e do futuro museu, o que lhe falta ainda realizar? 

Falta sempre alguma coisa! A moda tem isto, que é de seis em seis meses voltar ao zero. E isso tem tanto de dificuldade como de aliciante, eu tenho que superar sempre a coleção anterior. 


Mas ainda tem que provar algo a alguém? 

Não, não tenho. Mas quero fazê-lo por mim, porque é isto que me faz feliz. 


Continua a falar com a mesma garra que sempre mostrou… 

Continuo a ter a mesma paixão de quando comecei! A diferença é que agora tenho outra segurança que não tinha, o que também me dá outro prazer. Quando comecei não percebia nada de nada. Lembro-me do primeiro desfile, não tinha qualquer experiência ou técnica. Não percebia nada de negócios nem de moda. Era apenas uma miúda com jeito para criar, uma grande imaginação, mas com a noção e a humildade de que percebia pouco. 


A humildade é importante no início de carreira? 

É fundamental! Vamos fazer asneiras a vida toda, faz parte da aprendizagem, mas é preciso ter humildade para dizer eu não sei, quero aprender e ir à luta. 


O primeiro desfile, há trinta anos, foi dos mais especiais da carreira ou houve outros «episódios» mais marcantes? 

Foi importantíssimo, foi o primeiro! Aliás, o Convento do Beato, onde aconteceu, ficará marcado para sempre na minha vida. Já lá voltei mais três vezes: no segundo desfile, quando celebrei os vinte anos de carreira, e depois os vinte e cinco. 


E como olha, com alguma distância, para o desfile que assinalou as três décadas da sua carreira? 

Posso dizer que o que senti foi felicidade total. Fizemos o maior desfile individual de sempre em Portugal: 80 coordenados com 80 
manequins! A sala tinha uma magia especial. Em Paris os desfiles são totalmente diferentes, são frios, quem está a assistir são os profissionais. Ali não! Tínhamos quase duas mil pessoas a assistir e eu conhecia praticamente todas! E as pessoas foram com muito boa vontade, vestiram-se a rigor. Aquilo era uma festa, não era apenas um desfile. 


Qual foi o sentimento quando, no final, subiu à passerelle? 

Foi um momento lindo e uma emoção! 


Sentiu que estava a viver o apogeu? 

Senti como um prémio que ainda não tinha. Todos os anos recebo 
prémios, graças a Deus, mas senti aquilo quase como que uma bênção. Da Madeira vieram tantas pessoas de propósito para o desfile… foi muito emotivo! 


Sentiu uma espécie de missão cumprida?

Senti que estes trinta anos foram uma bênção. Daqui para a frente, o que vier é bónus. 


Entretanto, voltou a receber o prémio de Personalidade de Confiança na Moda…

Pelo quarto ano consecutivo! Desde que existe ganhei-o sempre, e com a mesma humildade e agradecimento. Para mim os prémios dados pelo 

público são os mais importantes, os mais genuínos, guardo-os aqui comigo. Muito obrigada!


O Universo tem sido generoso consigo?

Acho mesmo que sim! Todos os dias quando acordo ouço as notícias e todos os dias agradeço pelo que tenho e pelo que tive, mesmo com altos e baixos.


Os últimos anos, de pandemia, foram diferentes para todas as pessoas. Como os enfrentou?

Nunca parei de trabalhar e só fiquei em casa quinze dias, logo no início. Arranjei-me todos os dias, como faço desde sempre, mesmo quando não 

saía de casa. Não mudei os meus hábitos. A única coisa que parou foram os desfiles e aí percebi que o mundo tinha mudado!


Em que sentido?

Eu achava que Paris era o mais importante do mundo e que se eu parasse «morria». E quando, de repente, Paris também para, dei por mim a perceber que o mundo tinha mudado. E eu, atrás de um computador, já não tinha que lá estar, podia apresentar o meu trabalho ao mundo inteiro de uma forma diferente. Essa foi a grande revolução que a pandemia me trouxe. 


Que, na prática, se traduz como?

Com a perceção de que Paris já não é o mais importante, que a vida é tão efémera e que não temos nada! Que o importante é ser feliz e fazer feliz quem está à nossa volta, estar com as pessoas de quem gostamos e fazer aquilo de que gostamos. Eu acho que mudei muito e para melhor! 


Em que se reflete essa mudança? 

Tento viver cada segundo e valorizar aquilo a que dantes não dava valor. Nunca fui de valorizar bens materiais. Adoro coisas boas, mas nunca vivi em função do dinheiro. Sempre vivi, na verdade, para ser feliz, porque o trabalho faz-me feliz. Pelo caminho ficaram casamentos, porque o mais importante sempre foi o trabalho. 


Nunca se arrependeu?

Acho que não nos devemos arrepender! Se pudesse voltar atrás, óbvio que faria coisas diferentes. Mas não me arrependo do que fiz. Quando penso nos prós e nos contras, os primeiros são sempre mais fortes e as pessoas que passaram pela minha vida e vieram por bem continuam nela até hoje. Mas daqui para a frente, a partir de agora, sinto que a minha vida não tem que ser apenas trabalho.


Tornou-se uma pessoa mais feliz?

Feliz sempre fui, tornei-me foi uma pessoa com mais noção da realidade. Como disse, achava que o mais importante do mundo era Paris, agora sou eu e as pessoas que estão à minha volta. 


Deixou de ser obstinada com o trabalho? 

Isso não, não consigo. Tenho que ir de A a Z, não consigo deixar nada a meio.


A vocação para a moda começa quando? 

Em pequena. Eu era daquelas meninas que não gostava de nada. A minha mãe comprava roupa e eu era a filha que nunca gostava de nada. 


Mas já gostava de brincar com «trapos»? 

Adorava! Pegava nas bonecas e numa tesoura e mudava-lhes logo o cabelo, a roupa, fazia tudo à minha maneira.


E mais tarde, na adolescência, já se destacava pela maneira de vestir?

Sempre! Tirava moldes da revista Burda e depois transformava à minha maneira. 


Mas quando foi estudar não enveredou logo pela área…

Não. Até porque, tendo nascido na Madeira, o óbvio era ir para Turismo. E até tinha muito jeito para as línguas. Durante quatro anos fui guia turística, o que foi a minha escola de vida. 


E a moda quando chega?

Quando comecei a conhecer pessoas ligadas ao mundo da moda e a perceber que era possível fazer alguma coisa na área. Não na Madeira, mas se saísse de lá. Tudo começou com o conhecimento da existência das Manobras de Maio, onde se podia entrar sem se ser profissional. 


E decidiu arriscar?

Deixei tudo para trás e vim para Lisboa começar do zero com uma amiga com quem abri uma lojinha multimarcas, a Versus, na Avenida de Roma. Nessa altura comecei a ir às capitais de moda comprar roupa, acessórios, sapatos…


E a marca Fátima Lopes, quando começa?

A determinada altura decidi comprar não só roupa, mas também tecidos, e fazer uma experiência. Arranjei uma costureira e desenhei umas 

20 peças a que chamei Versus. Venderam-se num ápice! Na mesma época fui convidada para desenhar para marcas estrangeiras e foi então que achei que tinha chegado a minha altura. Nunca mais comprei uma peça de roupa. Comprei muitos tecidos e comecei a planear o primeiro desfile. A partir daí as coisas foram crescendo sem fazer grandes planos! 


E o boom Fátima Lopes dá-se quando?

O primeiro desfile foi logo um grande sucesso porque, na época, a moda estava muito estagnada, não havia desfiles, não havia praticamente nada, então fui uma lufada de ar fresco. Fiz três desfiles sozinha até começar a Moda Lisboa. Depois fui para Paris e comecei a fazer feiras de moda e a vender lá fora… as coisas foram sempre acontecendo e nunca parei. Mas o momento de viragem foi, sem dúvida, quando entrei em Paris. Fui o primeiro português a entrar na Fashion Week de Paris. 


Mas depois há ainda um momento muito marcante…

Sim, o desfile do biquíni de diamantes, três coleções depois da estreia na Fashion Week de Paris. A partir daí a Fátima Lopes passa de marca nacional a internacional, passo a ser a «criadora portuguesa». Até Portugal começou a olhar-me com outros olhos… 


Como era olhada até aí? 

Mesmo a imprensa especializada achava que o que era igual era a tendência. E eu era uma outsider porque não era igual a ninguém. Acho que na altura não entenderam quem era a Fátima Lopes. Eu era eu, não apenas mais um. Só quando Paris me abre as portas, precisamente por causa dessa diferença, é que as pessoas mudaram a maneira como olhavam para mim. 


Foi um início difícil…

Muito! Quando comecei, a indústria nacional quase que nos desprezava, nunca acreditou nos criadores, a palavra apoiar nunca existiu. Então, fui obrigada a abrir uma fábrica. A indústria portuguesa sempre preferiu trabalhar para os estrangeiros, como aliás continua a fazer hoje em dia. Felizmente agora já não preciso, mas os miúdos que estão a começar não têm qualquer apoio. 


Mas apostar na moda em Portugal vale a pena? 

Portugal poderia ser uma capital da moda! Temos criadores e uma 

indústria irrepreensível, com qualidade. Só não temos visão industrial para ligar as partes. Está na altura de as pessoas abrirem os olhos e perceberem que a moda não é uma brincadeira. Tem o seu lado de espetáculo, cultural, mas também uma vertente de negócio, que poderia ser para Portugal uma grande mais-valia se houvesse essa noção, que ainda não há. 













As coleções de passerelle da estilista farão parte de um ambicioso projeto, o museu Fátima Lopes. 



Os trinta anos de carreira de Fátima Lopes assinalados em setembro com um grandioso desfile.



No ano 2000 a estilista surpreendeu o mundo da moda com o icónico biquíni de ouro e diamantes. 


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