ATÉ AO INFERNO E DE REGRESSO

ATÉ AO INFERNO

E DE REGRESSO 


A cratera de Darvaza, no Turquemenistão, é conhecida como as «Portas do Inferno». Estive nas margens e vivi para contar.


Tim Johnson




A PERCORRER O GLOBO 


como escritor de viagens e tendo visitado quase 150 países ao longo de cerca de vinte anos, já vi muitas coisas incríveis. Já estive no cesto de um balão de ar quente a ver manadas de elefantes a atravessarem o Serenguéti. Viajei de helicóptero na Antártida para ver baleias-corcundas a alimentarem-se nas águas gélidas. Vi com espanto o Taj Mahal, na Índia, Macho Picchu, no Peru, e as pirâmides de Gizé. Até senti os últimos raios de um pôr do Sol a esvanecer-se sobre Angkor Wat, no Camboja, sentado no cimo de um templo.

Mas nunca, nunca, vi ou experimentei algo como as «Portas do Inferno», com as chamas a erguerem-se do fundo da cratera 30 metros abaixo, a iluminarem o deserto de Karakim com metano a arder. A minha visita há cerca de uma década foi uma experiência inesquecível. 

Aquele lugar está na minha mente porque recentemente foi notícia que Darvaza, a famosa cratera de gás no Turquemenistão, irá ser finalmente extinta, o seu abismo poluidor está prestes a ser tapado, esperemos que para sempre. O novo presidente do país, Serdar Berdimuhamedov, anunciou que os Estados Unidos irão ajudar o país a fazê-lo para bem de todo o mundo.

A cratera fica num dos dois principais campos de gás do Turquemenistão, que contribuem muito para as mudanças climáticas. (Dados de satélite reunidos para o The Guardian mostram que as fugas de metano daqueles campos causaram mais aquecimento global em 2022 do que todas as emissões de carbono do Reino Unido.)


De acordo com o Programa Ambiental das Nações Unidas, o metano é responsável por mais de 25% do aquecimento global que hoje sentimos. Aprisiona mais calor na atmosfera por molécula do que o dióxido de carbono, tornando-o oitenta vez mais potente do que o CO2 e durante mais tempo – vinte anos depois de libertado.

Os Estados Unidos têm-se empenhado neste assunto e as principais autoridades, incluindo o antigo senador John Kerry, agora enviado especial pelo clima, e o secretário de Estado Antony Blinken, reuniram-se com presidente do Turquemenistão e outros representantes na primavera de 2023.


Resolver o problema da cratera de Darvaza era um dos principais objetivos da comunidade global na antecipação da cimeira do clima COP28 das Nações Unidas, no Dubai, em Novembro passado. Isso é uma coisa boa. Mas permitam-me saborear as minhas memórias.


A minhavisitaem 2015 à maior atração turística do Turquemenistão teve lugar por altura de uma épica travessia por terra da Ásia Central, na pista da antiga Rota da Seda. Tinha aterrado em Tashkent, a movimentada capital do Uzbequistão, o país a norte do Turquemenistão, e passei algum tempo com um pequeno grupo internacional a visitar o país: as cúpulas azuis, os vivos bazares de Bukhara e a grandiosa cidade velha de Samarcanda, o coração e alma do império do século xiv do conquistador Tamerlão. 

Cortei a barba e o cabelo com a técnica tradicional – o que significa que o barbeiro usou fogo para eliminar os cabelos em excesso na minha cara. Acompanhei refeições reconfortantes como shashlik (espetadas de borrego) e manty (pastéis recheados com carneiro picante) com cerveja fresca local.


Depois encetei o longo caminho de carro até Ashgabat, a capital do Turquemenistão. Mal podia esperar para a ver. Ouvira dizer que tinha o maior número de edifícios de mármore branco do mundo. E algumas estruturas razoavelmente bizarras, incluindo um termóme 

tro gigante e a maior roda-gigante de feira interior do mundo. Mas primeiro iríamos parar no caminho junto à principal atração. Para vermos as chamadas «Portas do Inferno».

Depois de atravessarmos a fronteira para o Turquemenistão, as paisagens áridas infindáveis tornaram-se ainda mais vastas. Os motéis simples e acolhedores onde havíamos pernoitado ficaram para trás. Andámos por quilómetros de difíceis estradas do deserto durante os dias que se seguiram, longe de qualquer povoado significativo, e dormíamos em tendas básicas, apenas com uma lona entre nós e as estrelas. 


Finalmente, numa tarde, encostando num ponto plano aninhado entre duas colinas – um dos locais mais desolados que alguma vez vi –, chegámos à zona da cratera de Darvaza, onde acampámos nessa noite. Primeiro, no entanto, o nosso guia disse-nos que iríamos ver a cratera, a 8 quilómetros de distância. 


Em breve chegou um condutor vindo de Ashgabat com um grande Land Cruiser de tração às quatro rodas de que precisávamos para nos aproximarmos do buraco em chamas. O nosso grupo de seis pessoas empilhou-se lá dentro e, em direção ao pôr do Sol, avançámos pelo deserto de Karakum, a rolar velozmente na estrada para o inferno.

De acordo com um ditado antigo, esta estrada em particular está pavimentada de boas intenções, mas na realidade a nossa não estava pavimentada de todo. Levantámos um rasto pelo meio da areia e uma nuvem de pó que parecia ter quilómetros de comprimento. Encafuado nos lugares de trás do Land Cruiser, segurei-me bem enquanto o nosso condutor turcomano acelerava a toda a velocidade, com o rádio bem alto, sintonizado numa mistura de euro-pop e cordas vibrantes do Médio Oriente.

Enquanto contornávamos colinas e rugíamos por cima das cristas, velhas condutas sem uso e equipamento de perfuração surgiam de entre as sombras. Avistámos um camelo no cimo de um pequeno monte cor de cobre à nossa esquerda. Mas ambos ficaram para trás na poeira enquanto avançávamos para a cratera em chamas no horizonte.

E ali estava ela.

Ao vermos as chamas, eu e os meus companheiros ficámos agitados. «Inferno», disse o meu vizinho de assento, com um sotaque carregado de Liverpool, «aqui vamos nós!»


Até 1991 o Turquemenistão era uma das repúblicas mais a sul da União Soviética, que avidamente recolhia os seus vastos recursos de gás natural. Desde a queda do comunismo, o país, com uma população de 6,5 milhões de pessoas, foi governado por uma sucessão de três ditadores excêntricos.


O primeiro, Saparmurat Niyazov, declarou-se «presidente perpétuo», rebatizando os meses do ano segundo membros da sua família e erguendo dúzias de estátuas douradas que o representavam antes de morrer, em 2006.


Depois, o presidente Gurbanguly Berdimuhamedov permitiu uma maior abertura do país – que levou a um notável afluxo de turistas que acorrem para observar, no alto, os minaretes brilhantes e, em baixo, as profundezas do inferno – e deu continuidade aos costumes autoritários do seu antecessor, ficando-se por um culto de personalidade mais modesto.



O PERIGO FAZIA PARTE DA EMOÇÃO, SABIA QUE O CHÃO PODIA CEDER A QUALQUER MOMENTO.


Bem, embora «modesto» enquanto líder também era um pouco excêntrico. Por exemplo, no feriado nacional dos turcomanos em 2018 emitiu um vídeo em que fazia um rap sobre a sua raça de cavalos favorita – a mesma raça da estátua dourada que, uns anos antes, encomendou dele próprio na sela. Está numa rotunda movimentada em Ashgabat. E em 2020 inaugurou uma estátua da sua raça de cães preferida. Um grande cão Alabai folheado a ouro, símbolo do orgulho turcomano, está noutra rotunda de Ashgabat. Um ecrã vídeo na sua base mostra crianças a brincarem com cães da raça, a correrem pela relva e pelo deserto. Deixou o poder em 2022, embora ainda tenha a alcunha de «Arkadag» (Herói Protetor).

O sucessor é um dos seus filhos, Serdar Berdimuhamedov, que parece seguir a mesma linha. (Tal pai, tal filho.) O novo regime está a construir uma cidade a 30 quilómetros da capital com um custo de cerca de 5000 milhões de dólares. O seu nome? Arkadag.



AS CHAMAS LÁ EM BAIXO, TEMÍVEIS E SUBLIMES, ARDIAM AO CREPÚSCULO.



A maior atração turísticado Turquemenistão ainda é, por agora, as chamas no deserto. A aproximadamente meio caminho entre Kunya-Urgench, local Património Mundial da UNESCO, na fronteira norte, e Ashgabat no sul do país, a cratera de gás de Darvaza fica perto do centro geográfico do Turquemenistão. 

Mas só está ali há cerca de cinquenta anos. No início da década de 1970 os geólogos soviéticos, acreditando estar sobre um depósito de petróleo, começaram a perfurar o local. Para sua surpresa, atingiram uma grande bolsa de metano. O chão abriu-se, criando um buraco com 70 metros de largura e 30 de profundidade. 


Os geólogos agravaram o erro deitando fogo à cratera, acreditando que iria queimar o metano que jorrava dela no espaço de algumas semanas. Cinco décadas depois, Darvaza ainda arde.

Antes de chegarmos à cratera somos avisados para nos mantermos a três metros da orla porque pedaços de deserto quebradiço já caíram para o buraco. (As aranhas também mergulham nas profundezas, aparentemente atraídas pela luz que sai de dentro.) Na altura da minha visita, o local não tinha caminhos demarcados nem um corrimão a proteger. Li que foi instalada uma modesta vedação em 2018. 


Tal como as aranhas, o nosso pequeno grupo sentiu-se atraído pelo brilho. Apeando-me do Land Cruiser caminhei até à orla, espreitando para baixo, para a chama ao centro. Era uma visão surreal, de outro mundo: um buraco a brilhar e a arder no meio do deserto.


Esperava sentir o cheiro a ovos podres devido ao enxofre, mas o gás era quase inodoro. E quando os ventos mudavam e atiravam o calor para fora da cratera, sentia-se um intenso golpe seco de calor na cara, como uma sauna – como ser-se atingido pelo poderoso escape de um motor a jato. Tive de confirmar se não tinha as sobrancelhas chamuscadas (o que seria adequado, dado o tratamento de barbearia que havia feito antes da viagem.) As rajadas também eram sufocantes. O metano não é tóxico mas desloca o oxigénio, dificultando a respiração durante alguns segundos.


Ficámos lá aproximadamente três horas. Circundei a cratera várias vezes aproximando-me perigosamente da berma, aventurando-me até sobre uma pequena plataforma reforçada por uns canos velhos para ver melhor. Sabia que o chão podia ceder a qualquer momento. Senti-me como o Indiana Jones. 

Fizemos poses à vez em frente do grande abismo em chamas para uma fotografia única na vida. Um casal abriu as cadeiras e saboreou um vinho uzbeque barato, com as caras e os copos iluminados pelas chamas próximas enquanto apreciava um estranho momento romântico. 

Regressámos cedo ao nosso sucedâneo de acampamento, com aqueles ritmos vagamente do Médio Oriente a bombar nos altifalantes e a lua quase cheia a iluminar o deserto. 

Podia-se dizer que fui ao inferno e voltei, mas parecia antes outra coisa. Uma visita a uma terra estranha, certamente, ou talvez a um planeta diferente. Pode ter sido do gás (ou da adrenalina) que me afetou os sentidos, mas senti o brilho no caminho de regresso ao acampamento. 


Revivendo agora a minha visita, aquele abismo parecia feroz, insaciável. E, na verdade, apesar da excitação sobre o fecho da cratera, alguns especialistas têm sérias dúvidas de que ajude. Mesmo que as chamas possam ser extintas e a cratera e a área circundante sejam preenchidas com cimento, o gás ainda irá encontrar uma forma de se escapar, diz Mark Tingay, professor especializado em geomecânica do petróleo na Universidade de Adelaide, na Austrália. 


«O gás deve provir de fontes profundas por entre fraturas na rocha e pela permeabilidade natural da rocha», diz. Se fosse tapado, «o gás iria provavelmente fluir em torno dessa tampa e escapar para a superfície por novas vias». 


Parece que estas teorias vão ser testadas, e em breve. Mesmo tentar tapá-la será um projeto mastodôntico. Só a primeira tarefa – extinguir as chamas – poderá envolver regá-la com uma quantidade de espuma inimaginável (imaginem um extintor gigante) ou sufocá-la com um colossal cobertor antichamas. 


E mesmo que não houvesse chamas, ainda havia o problema daquele metano todo, que iria continuar a subir das profundezas e a escapar. Há a possibilidade de o metano ser efetivamente capturado antes de atingir a atmosfera e ser usado como fonte de energia, mas ainda não parece haver um plano firme traçado para a cratera de Darvaza. 



Na minha mente, Darvaza será sempre aquele momento em que o Sol se escondeu e as estrelas surgiram. Ali de pé junto à orla, com a noite a arrefecer, tantos quilómetros de deserto à minha volta, naquela terra distante. As chamas lá em baixo, temíveis e sublimes, a arderem no meio do crepúsculo. Uma fantasia ou um sonho. À beira de uma das grandes curiosidades da Terra, algures entre os céus e – sim – o inferno. 


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