Táxi em zona de guerra

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TÁXI EM ZONA DE GUERRA



Declan Walsh DE THE NEW YORK TIMES



À medida que a capital sudanesa mergulha no caos, dois homens entram em ação.



NOS PRIMEIROS DIAS DE GUERRA NO SUDÃO


os dois estudantes universitários sentiram-se impotentes. Trancaram-se no apartamento que partilham na capital, Cartum, colados ao Twitter (que agora se chama X), enquanto a batalha se desenrolava.

Quando as paredes se esboroavam com a intensidade das explosões, abrigavam-se no corredor. Questionavam-se sobre o destino do Sudão.

No quinto dia de guerra, a 19 de abril de 2023, o telefone tocou: alguém precisava de um táxi.

Uma oficial sénior das Nações Unidas, uma mulher nos seus 40 anos, chamada Patience, estava fechada em casa, num bairro abastado da cidade. Do lado de fora do prédio havia camiões com metralhadoras instaladas no topo que disparavam contra os aviões que sobrevoavam a cidade. Na sequência de um ataque aéreo nas proximidades, fumo negro invadiu-lhe o apartamento. Estava sem água. Só tinha 5% de bateria no telemóvel. Podiam ir resgatá-la?

Hassan Tibwa, de 25 anos, e Sami al-Gada, de 23, dois estudantes de Engenharia Mecânica, conduziam um táxi como biscate para ganhar algum dinheiro. Mas aquele telefonema não era para um trabalho pago – era uma missão de salvamento, um ato de misericórdia.

Hassan telefonou a Patience. «Ela só gritava», recorda. «Apenas tínhamos uns minutos até ela ficar sem bateria. Estava por sua conta.»


Hassan e Sami saltaram para o carro de Sami, um Toyota com sete anos já bastante amolgado, e dirigiram-se para o centro da cidade, horrorizados com a transformação que os seus olhos viam: os edifícios estavam pejados de buracos de balas. Os carros carbonizados amontoavam-se nas ruas. Havia combates por todo o lado. Pisando cartuchos de balas, atravessaram postos de controlo vigiados por nervosos combatentes paramilitares das Forças de Apoio Rápido (RSF), alguns dos quais coxeavam ou tinham ligaduras nas feridas. Revistaram os telemóveis dos estudantes e inundaram-nos de perguntas. Demoraram uma hora a percorrer seis quilómetros.


«Atravessámos o inferno», contou Hassan.


Encontraram Patience sozinha em casa, com buracos de balas extraviadas na parede da sala de estar. Disse que há dias que estava escondida na casa de banho e lentamente esgotou a bateria de três telemóveis. Os estudantes consolaram-na, envolveram-na num vestido estilo abaya, que a cobria por completo, e congeminaram a história que lhes iria servir de disfarce: a passageira que transportavam estava grávida e precisavam de a levar para o hospital. Antes de saírem, pararam para rezar. «Sabíamos que, assim que puséssemos um pé de fora, não podíamos voltar atrás», disse Hassan.

Quarenta e cinco minutos e dez postos de controlo depois, estacionavam o Toyota junto ao Al Salam, um dos hotéis mais caros de Cartum, convertido em campo de refugiados de cinco estrelas. Patience chorava de alívio.

Depois de fazer a admissão, fez aos dois estudantes um pedido urgente: eles poderiam voltar e salvar também alguns amigos dela?


Nos seis dias seguintes, enquanto os combates entre o Exército sudanês e as RSF recrudesciam, Hassan e Sami ajudaram cerca de 60 pessoas: professores sul-africanos, diplomatas do Ruanda, trabalhadores da ajuda humanitária da Rússia e funcionários das Nações Unidas de muitos países, incluindo do Quénia, Zimbabué, Estados Unidos e Suécia. Dez passageiros garantiram que os estudantes os ajudaram em momentos de puro terror em que estiveram em risco de vida. 


Pelo caminho foram roubados, algemados e ameaçados de morte. Os combatentes acusavam-nos de ser espiões. O carro foi alvejado.

«A coragem deles foi absolutamente incrível», resumiu Fares Hadi, um gerente fabril natural da Argélia que fez uma viagem de arrepiar por Cartum.


As pessoas resgatadas afirmam que os estudantes não reclamaram qualquer pagamento. «Heróis é a única palavra que os descreve», afirmou um funcionário das Nações Unidas, sob anonimato, para evitar críticas públicas sobre uma organização que, de acordo com múltiplos relatos, falhou na proteção aos seus empregados, mesmo aqueles que enfrentavam perigo imediato. «Apesar do caos, do medo, das bombas», disse, «Sami e Hassan nunca nos viraram as costas».


No entanto, enquanto conduzia os estrangeiros para um local seguro, a família de Hassan não sabia que ele estava no Sudão. Tinha chegado em 2017, vindo da Tanzânia, onde a família tinha uma pequena loja de ferragens numa pequena cidade junto ao lago Vitória. Uma organização de solidariedade islâmica concedeu-lhe uma bolsa para estudar Engenharia na Universidade Internacional de África em Cartum. Sabendo que se preocupavam com a instabilidade violenta do passado recente do Sudão, Hassan disse aos pais que ia estudar para a Argélia – uma mentira que manteve durante seis anos.

Sami al-Gada é sudanês, mas foi criado numa cidade pacata na Arábia Saudita onde o pai era mecânico de automóveis. Colegas na universidade, os dois jovens rapidamente se tornaram amigos: partilhavam o espírito aberto e animado, além de uma forte veia empreendedora que os levava a aceitar trabalhos estranhos para pagar a renda. Hassan conduzia um táxi que servia essencialmente os funcionários africanos das Nações Unidas.

A turbulência política no Sudão pôs fim às suas ambições: as aulas foram canceladas durante quase todo o ano de 2019 quando os manifestantes, entre os quais se incluía Sami, ajudaram a depor o ditador Omar Hassan al-Bashir.


Depois, em outubro de 2021, os dois líderes militares mais poderosos do Sudão – o general Abdel Fattah al-Burhan, do Exército, e o tenente-general Mohamed Hamdan, das RSF – juntaram forças para «derrubar» o primeiro-ministro, civil. Os protestos eclodiram por toda a parte. A economia afundou.



«IMAGINÁVAMOS QUE PODÍAMOS SER NÓS NAQUELA SITUAÇÃO. E ÍAMOS.»



No início, os dois estudantes não se preocuparam muito com os tiroteios que se ouviam em Cartum na madrugada de 15 de abril de 2023: os manifestantes antimilitares tinham confrontos com a polícia há mais de um ano. Mas quando Sami se dirigiu ao campus da universidade para entregar um trabalho, os vigilantes mandaram-no para casa. Desta vez, disseram, não era um protesto. Era a guerra.


Os meses de tensão acumulada entre os generais que governavam o Sudão culminaram em tiroteios entre unidades rivais que rapidamente alastraram ao centro da cidade, concentrando-se em torno dos quartéis-generais e do aeroporto internacional.

A zona fazia fronteira com dois distritos nobres, Khartoum 2 e al-Amarat, com as embaixadas, escritórios da ONU e casas de estrangeiros e sudaneses endinheirados. Também havia várias bases das RSF. Os combatentes assumiram posições nos telhados, invadiram casas e, em alguns casos, roubaram os moradores. O embaixador da União Europeia foi agredido dentro de casa. Um obus caiu em frente da residência oficial do embaixador britânico mas não explodiu. Uma caravana norte-americana esteve debaixo de fogo.

A ONU, tal como a maioria das organizações, ordenou que os seus mais de 700 funcionários e dependentes em Cartum «se refugiassem no local». Mas, embora a sua divisão de segurança tenha resgatado algumas pessoas nos primeiros dias de combate, os esforços de resgate foram rapidamente suspensos.

Sami e Hassan não foram os únicos a resgatar pessoas. Alguns comités locais de resistência, que se formaram anos antes para impulsionar o Sudão a converter-se numa democracia, mudaram o foco e ajudaram sudaneses e estrangeiros a fugir.

Mas para alguns residentes aflitos os dois estudantes eram mesmo a única opção. «Telefonavam-nos», recordou Hassan. «Não tinham o que comer. Não tinham eletricidade. Os telemóveis estavam a ficar sem bateria. Imaginávamos que podíamos ser nós naquela situação. E íamos.»


Horas depois de terem colocado Patience em segurança, os dois estudantes receberam uma mensagem de outra funcionária das Nações Unidas. As RSF tinham dado três horas aos residentes do prédio onde morava para saírem. «Estou resignada com o meu destino», escreveu. Hassan respondeu com a promessa de que iriam buscá-la, mas Sami não tinha tanta certeza. Era quase noite e o frágil cessar-fogo estava a terminar. Uma discussão tensa terminou com a decisão de ir, a contragosto. «Não estávamos muito satisfeitos um com o outro», confessou Hassan. 


No apartamento encontraram bem mais do que estavam à espera: cerca de 15 pessoas, incluindo um casal coreano com duas crianças. O grupo saiu numa caravana de três veículos, com as janelas abertas para ser bem visível que transportavam mulheres e crianças. Entretanto, os combates recomeçaram na cidade, com tiroteios e ataques aéreos. No segundo carro, Danielle Boyles, de 27 anos, educadora de infância natural da África do Sul, viajava coberta com uma abaya. Num posto de controlo, um combatente ameaçou disparar contra o funcionário malaui da ONU que estava sentado ao lado dela. Começou a tremer e a rezar. «O homem das RSF carregou a arma», contou. «Quando ouvi o barulho, achei que ele estava morto.» Mas não foi disparado qualquer tiro. 


Quando chegaram ao Hotel Al Salam, saíram do carro exaustos.


O Al Salam é conhecido como o salão político do país, onde os ricos, poderosos e fortemente armados discutiam o futuro do Sudão. Veículos de luxo com os vidros fumados paravam diante das suas portas giratórias. Líderes de milícias encontravam-se com diplomatas ocidentais no buffet de 50 dólares por pessoa. Negociadores da União Africana bebiam café no átrio e os mercenários do grupo privado militar russo Wagner exercitavam-se no ginásio.

A guerra transformou o hotel. Ao quinto dia, todos os 236 quartos e suites estavam ocupados, alguns com seis pessoas por quarto.

Os buracos das balas pontuavam os vidros do átrio e os quartos dos hóspedes que, nos andares superiores, filmavam os tiroteios. A comida passou a ser racionada. Quando uma intensa batalha teve lugar mesmo em frente à entrada principal, os hóspedes amontoaram-se na cave e nos balneários do ginásio.


Sami e Hassan tornaram-se presenças constantes no átrio, atirando-se para cima dos sofás após as operações de resgate. Ainda era o Ramadão, o mês sagrado do jejum, e não comiam nem bebiam até ao por-do-sol. Os hóspedes maravilhavam-se com o facto de continuarem a salvar pessoas. «Creio que o que os movia era a adrenalina», disse a mulher de um dos funcionários sénior da ONU.

Alguns hóspedes eram residentes locais que acorreram para o Al Salam quando a violência eclodiu. Pediram aos estudantes que fossem à casa deles para irem buscar os passaportes, computadores portáteis e animais de estimação. Foi neste contexto que entraram na casa deserta do chefe da agência da ONU para os refugiados no Sudão, guiados por uma videoconferência com um dos elementos da família. Tiveram de suster a respiração quando passaram pelo frigorífico, cheio de comida a apodrecer.

Hadi, o gerente fabril argelino, estava na piscina do hotel a aproveitar um dia de folga quando os combates começaram. Os estudantes levaram-no a casa para ir buscar o passaporte. Mas quando um soldado pensou ter visto algo suspeito no telemóvel de Sami, gerou-se o caos. De repente, o jovem deu por si com a cara no chão e uma Kalashnikov carregada apontada à nuca.

Fares Hadi, que assistiu à cena no banco de trás do carro, temeu o pior. Mas Sami não se calava e quinze minutos depois o combatente mudou de ideias. À medida que o carro se afastava, Sami «suava como tudo», lembrou Hassan. «Estava aterrorizado.»

Os estudantes perceberam que os combatentes das RSF tanto podiam ser amigáveis como assustadores. Formadas em 2013 a partir das terríveis milícias Janjaweed, que outrora espalhavam o terror na região ocidental do Darfur, nos últimos anos as RSF têm tentado recuperar a sua imagem. Mas são poucos os sudaneses capazes de esquecer que o grupo participou no massacre de cerca de 120 manifestantes pró-democracia em 2019.


Sami e Hassan contam que, quando se dirigiam para casa na sexta noite de combates, os combatentes das RSF roubaram-lhes do carro um telemóvel e 1100 dólares – dinheiro entregue por passageiros agradecidos. Sami participou o roubo no posto de controlo seguinte e um oficial das RSF insistiu em levar por diante uma investigação, mesmo com os combates a decorrer à volta deles.


Com os soldados das RSF ao volante do seu carro, Sami e Hassan foram conduzidos de regresso ao posto de controlo onde tinham sido roubados e daí para uma base improvisada das RSF no aeroporto da cidade. Assustado, Hassan enviou a localização a uma funcionária da ONU que tinham salvo. Ela instou-os a saírem dali imediatamente: «Por favor, Hassan, estou a implorar-te!!!», escreveu na mensagem.


Era demasiado tarde. Pouco depois apareceu outro oficial, um indivíduo carrancudo que interrogou os estudantes e os algemou.

O episódio acabou horas mais tarde, quando os combatentes devolveram 500 dólares e escoltaram os estudantes a casa. Pelo caminho, a caravana parou num posto de controlo onde os soldados comiam uma refeição de carne de camelo com arroz. Insistiram para que os estudantes se juntassem a eles. O comandante das RSF ainda lhes deu um saco com sobras para levarem para casa e, dias depois, enviou a Hassan uma fotografia da refeição partilhada às 03h00 nas ruas desertas de uma cidade em estado de choque. 


A última missão dos estudantes, a pedido de diplomatas do Ruanda, foi uma viagem pelo Nilo para resgatar uma mulher na cidade de Omdurman. Quando o Toyota se aproximou da casa, a mulher, que se identificou como Fifi, enviou-lhes uma mensagem: «Alhamdulilah», escreveu – o que significa «louvado seja Deus» em árabe. Estava grávida de 8 meses e encontrava-se retida naquele lugar há dez dias com o seu filho pequeno. 

Nessa altura, decorria o êxodo dos estrangeiros de Cartum. Os comandos lideraram uma evacuação dramática de helicóptero da embaixada norte- -americana. Aeronaves militares britânicas e francesas aterraram numa pista a norte de Cartum, partindo com diplomatas e cidadãos civis. 

A maior parte das pessoas resgatadas pelos estudantes para o Al Salam tinham abandonado o país a 23 de abril, na nona noite de combates, numa caravana das Nações Unidas com autocarros, carros e SUV que percorreu, numa jornada extenuante de trinta e cinco horas, 845 quilómetros até Porto Sudão. Dali, muitos embarcaram em navios e seguiram pelo mar Vermelho em direção à Arábia Saudita. À medida que os estrangeiros saíam, a maior parte dos cinco milhões de habitantes de Cartum permaneceu na cidade, trancados em casa, a rezar por um cessar-fogo. Ao início, os próprios estudantes também ficaram para trás, mas passados alguns dias também eles saíram da cidade. Um comandante amigo das RSF avisou-os de que era melhor irem porque «algo grande estava para acontecer» no centro da cidade, contou Hassan. Carregaram o Toyota e percorreram 23 quilómetros até ao limite da capital, onde a família de Sami tinha uma casa. 


Ponderaram as suas opções durante alguns dias, exercitando-se, bebendo café e lendo. Os aviões de combate rasavam o horizonte e uma bomba extraviada aterrou ali perto, matando membros de uma família que estavam em casa. 


Hassan queria ficar no Sudão, o país que tinha aprendido a amar – e onde estava a apenas um semestre de completar os estudos. Mas o seu tempo ali esgotara-se. 


A 3 de maio, Sami deixou o amigo numa rua onde ele ia apanhar um autocarro na direção da Etiópia e dali de regresso à Tanzânia. No entanto, um ajuste de contas pessoal ensombrava Hassan: os pais iriam ficar a saber que ele estudava no Sudão e não na Argélia. 

Quando se separaram, Hassan pegou no telemóvel e começou a filmar. «A despedir-me do meu companheiro Sami», disse, enquanto o Toyota se afastava e o amigo acenava pela janela. «Até à vista, man. Até à vista.» 


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