A JORNADA DE UM URSO POLAR

     

 A jornada de um urso polar 

É quase um milagre as suas minúsculas crias indefesas

conseguirem sobreviver neste ambiente hostil.

 

 

James Raffan

DE ICE WALKER: A POLAR BEAR’S JOURNEY THROUGH THE FRAGILE ARCTIC.

Nanu, uma fêmea de urso-polar, vive no deserto gelado das terras baixas da baía de Hudson, a sul de Churchill, na província canadiana de Manitoba.

A sua toca, que cavou na margem de um riacho, tem perto de 2 metros de diâmetro e mais meio metro de al­tura que o túnel de entrada. O ar que aquece com o corpo e a respiração sobe até este espaço, ficando mesmo abaixo da temperatura de congelação. Para poupar energia, ela consegue manter a temperatura do corpo um pouco abaixo dos normais 37 graus.


Uma mãe que não come há três meses é capaz de alimentar as suas crias in utero e ainda assim manter o metabolismo suficientemente baixo para conservar energia durante mais três meses de jejum. Isto porque, além do isolamento considerável – cinco centímetros de subpelo espesso, com­binado com um manto completo de longos e ocos pelos exteriores –, os ur­sos-polares têm uma camada de gor­dura debaixo da pele.

Em dezembro, num estado de ani­mação suspensa na sua toca escura, Nanu dá à luz duas crias cegas, sur­das, sem dentes e com o pelo felpudo que têm menos de 1% do seu tamanho, sem qualquer gordura corporal digna de registo. As crias, Siu e King, estão envoltas no ar quente preso nos pelos da barriga de Nanu. O nutritivo leite da progenitora, com 32% de gordura, não só ajuda a manter vivos estes recém­-chegados desamparados, como lhes permitirá desenvolverem-se quando as temperaturas lá fora podem estar tão abaixo de zero quanto a temperatura da mãe está acima.  


Às três semanas, o pelo fino é substituído por um denso subpelo e por pelos exteriores compridos. Aos 25 dias, as solas das suas pequenas patas com cinco dedos também começam a desenvolver pelo, comple­tando o isolamento de que precisam para se movimen­tarem na toca.

Antes de abrirem os olhos, no início do segundo mês, aprendem a orientar­-se com outros sentidos que se estão a desenvolver, mui­tas vezes com a ajuda cari­nhosa de Nanu. Começam a diferenciar texturas, chei­ros, sons e ritmos dentro da toca. Os ouvidos abrem-se ao segundo mês e nascem-lhes os dentes de leite. Ao terceiro mês conseguem erguer-se nas patas traseiras, preparando-se para aprender a andar.


As crias aumentam de um para dois quilos em janeiro, e de dois para qua­tro em fevereiro. Em março, têm cerca de 11 quilos e cada vez mais consciên­cia daquilo que as rodeia. 

A proximidade constante dos três ursos está a criar um laço familiar que irá levá-los à separação e independên­cia que ainda distam, pelo menos, dois anos.


Lá fora, o ar é seco e extremamente frio. As crias podem sentir a presença de uma raposa-do-ártico do lado de fora da toca a desenterrar pequenos mamíferos, como lemingues, que vi­vem na vegetação da tundra, debaixo da neve. Um dia, o som penetrante de um helicóptero, que larga varas de uma grelha para uma concessão mineira na zona, alarma as crias e aninham-se no colo de Nanu.

Em março, as crias começam a ter incisivos e caninos inferiores e a au­dição fica muito mais apurada. Agora conseguem ouvir a raposa a andar por cima da cova. E enquanto saltam e re­bolam juntas, experimentam diferen­tes vozes e chamamentos. 


Com toda esta atividade, Nanu tem de deixar o seu estado dorminhoco para raspar o gelo que se acumula nas paredes e manter a entrada de ar aberta.

Depois do equinócio a 21 de março, quando o Sol fica visível durante doze horas, os dias tornam-se rapi­damente maiores. Pela primeira vez, Nanu consegue ver as crias. Dentro de pouco tempo será a altura de os três chegarem à baía, a 70 quilómetros de distância.


Pela sua frente só há incerteza, como tem acontecido a todas as mães ursas que emergem depois do inverno desde o princípio dos tempos. Mas agora, quem sabe? Serão capazes de lidar com aquilo que os ameaça?

Com as mudanças climáticas, ace­leradas a par e passo devido ao «pro­gresso» tecnológico, a mudança está a acontecer muito mais depressa do que a capacidade de resposta de qual­quer animal ou planta. Nanu e as crias vivem em circunstâncias que, quase a qualquer momento, irão desafiar a sua sobrevivência.

 

A ursa adulta que abre caminho na neve em direção ao Sol de abril tem uns parcos 250 quilos, é uma sombra de si mesma. As crias passaram de 1/500 do peso da mãe, quando nasceram, para 1/20. A luz do Sol sobre os montes de neve cristalina fá-las piscar os olhos enquanto rebo­lam para fora da toca.

Apenas com a cabeça e os ombros de fora, Nanu cheira o ar e perscruta devagar em todas as direções. Rigida­mente, arrasta-se para fora da toca, abana-se com vigor e coloca-se de pé pela primeira vez em cinco meses. Di­rige-se para a toca, bufando para que as crias a sigam. Avançando até ao cimo de uma encosta a uma dúzia de metros do riacho, ergue-se olhando para um lado e depois para o outro. Observando à distância. A cheirar o ar. Sabe, por instinto, que tanto ela como as crias estão vulneráveis. 


A primeira surtida para fora da toca não dura mais de meia hora. Ao longo da semana seguinte, Nanu e as crias sobem a encosta, parando num local onde o vento expôs as ervas alpinas. Nanu come para aliviar a fome e rea­tivar o sistema digestivo. 

As saídas nestes primeiros dias for­talecem e tonificam os músculos para a viagem que irá ter início. Mas estes passeios também preparam o corpo de Nanu para a longa caminhada até à baía.

Nanu decide que chegou a altura de ir. Durante os dez dias desde que abriu a toca, o mar tem estado ali ao vento, em particular vindo de leste. Recortados no sol cada vez mais forte, os três ursos afastam-se, com as crias a andarem por entre as patas de Nanu, a desviarem-se e a serem chamadas de volta.


A rota que escolheram é semelhante à que Nanu fez pela primeira vez com a mãe há nove anos. Não tarda muito até passarem por um cruzamento de cumeadas, cada uma um pouco mais baixa do que a anterior.

As crias agora brincam menos por­que, quando não estão a caminhar ou a mamar, dormem. Os pulmões em de­senvolvimento experimentam algo de novo a cada fôlego, permitindo-lhes terem consciência física de espaço. O Sol move-se da frente para trás à medida que avançam. Para Nanu são sensações familiares, como melodias de uma música há muito lembrada. 


King provavelmente nunca voltará tanto para o interior. Como macho, hibernará durante o inverno. Siu, pelo contrário, irá regressar instin­tivamente, seguindo o aspecto e as sensações do lugar – os abetos junto ao solo nas cumeadas das praias, o cheiro ténue a gasóleo dos comboios que circulam entre as cidades de The Pas e Churchill, as pungentes tocas das raposas – traçando de volta a linha que gravavam na neve.

De súbito, Nanu para com o corpo contraído e a postos. Também as crias param de repente. Nanu fareja e solta um grunhido agudo que as crias nunca ouviram com tal intensidade. Coloca­-se de pé e fareja, primeiro numa di­reção, depois noutra e ainda noutra, fixando-se na direção de onde o vento sopra. À distância, três lobos-cinzentos caminham para ela.


Encorajando as crias a manterem­-se por perto, coloca-se de novo de pé para que os lobos a possam ver antes de dar alguns passos vigorosos na sua direção. Cai sobre as patas e continua a caminhar para os lobos, com as crias atrás dela. Movida por uma mistura maternal de medo, cuidado e cora­gem, Nanu escolhe mostrar-se como uma ameaça.

De novo, ergue-se irradiando a con­fiança que o tamanho lhe confere. Desta vez, os lobos param, olham e, a seguir, desviam o olhar. De repente, viram-se e fogem. Por agora, pelo me­nos, a ameaça está afastada.

Neste ponto das suas vidas, as crias ainda não são capazes de correr. Nanu não as deixaria a não ser para lutar por elas. O melhor que pode fazer para as proteger é encorajá-las a es­cutar e esperar.

 

No sexto dia sobem a um monte. As crias, às cavalitas da mãe, cheiram o ar e sentem que algo está diferente. Pela primeira vez, Siu e King sentem o odor de gelo lama­cento nas planuras costeiras da baía de Hudson. Misturados com o aroma fa­miliar, há óleo usado, que pode ter sido levado pela água, e um cheiro acre a de­tritos de plástico que chegam na lenta rotação nas águas da baía de Hudson.

Na praia, Nanu inicia um galope curto. Parando de repente, deita-se de costas, rebola com as patas no ar e as crias trepam-lhe para cima. Levanta­-se, abana-se e cheira ao longo de uma abertura no gelo. Desaparece por mo­mentos pela fenda e aparece com um grande pedaço avermelhado de algas marinhas repletas de alginatos e fibra que irão preencher o seu sistema di­gestivo e prepará-lo para a refeição seguinte. Os pequenos cansam-se rapi­damente delas e abrem caminho para beberem mais leite.


Continuam sobre o gelo. Nanu para, cheira e coloca-se de pé com muito mais frequência do que fazia quando estavam em terra. Ela e as crias estão a entrar num mundo perigoso com ur­sos machos. 

A ameaça dos machos é extrema. Se não atacarem o trio para se alimen­tarem num ano magro, atacam as crias na esperança de que a fêmea volte a en­trar no cio. Por mais faminta que esteja, Nanu tem de estar sempre vigilante.

O som de uma gralha e os grasni­dos de uma gaivota hiperbórea atraem a atenção de Nanu para um local dis­tante ao longo de uma crista de pressão. Aí, encontra os restos de uma cria de foca-anelada. É quase só a pele peluda que outro urso deixou, mas ela come-a e continua a deslocar-se ao longo da fenda.


De repente, para. Localizou um aglu, um furo que as focas fazem no gelo para respirar. Nanu empurra Siu e King para uns metros de distância e faz o melhor que pode com gestos, sopros baixos e empurrões gentis para que fiquem dei­tados enquanto ela volta ao furo para preparar a caçada.

Com uma precisão e cuidado que parecem contradizer o tamanho e força das suas patas, raspa um pouco da neve que cobre a fina camada de gelo no in­terior do covil. 

King vai dormir, mas Siu não tarda a ir para junto da mãe. Nanu empurra Siu para o seu lado e, sentada com as patas quase sobre o que seria o apex da cúpula do aglu, fica hirta. Siu perma­nece em silêncio. 

Nanu consegue ouvir a cria dentro do covil, mas não é essa a refeição por que espera. Por fim, sente um sopro de ar condensado subir pelo furo no aglu, seguido pelo ecoar de água que se agita em baixo. Finalmente, a mãe foca ras­teja para fora de água, para o seu covil, para amamentar. 


Num movimento suave, com as patas da frente em riste, Nanu ergue-se e cai sobre o aglu, primeiro as patas e depois a cabeça. Então, para espanto de Siu, emerge da superfície do gelo com uma foca quatro vezes maior do que a cria. 

Nanu mantém a frágil cabeça da foca presa nos dentes. Quando esta deixa de se debater, rasga-lhe a pele cinza-pra­teada para aceder à rica gordura por que ansiava. Dentro de pouco tempo as crias também começam a alimentar­-se da carcaça. A vida no gelo começou a sério. 

 

DE ICE WALKER, POR JAMES RAFFAN. COPYRIGHT© 2020 POR JAMES RAFFAN. REIMPRESSO SOB PERMISSÃO DE SIMON & SCHUSTER CANADÁ. 

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