100 ANOS DE AGUSTINA

100 anos de Agustina 


As palavras soltavam-se de pensamento livre. 



A vida e obra de Agustina Bessa-Luís está a ser celebrada desde o mês passado, quando se comemora o centenário do seu nascimento, a 15 de outubro de 1922. É um bom pretexto para descobrir, ou rever, os seus escritos de uma vasta e reconhecida carreira nas letras. Agustina como autora passou por quase todos os géneros, sem exagero pode dizer-se que grande parte da sua vida foi passada a escrever. Tinha uma escrita de caligrafia perfeita, desenhada e constante, sem rasura nem volta atrás. Eram manuscritos de palavras sem dúvidas, como se as suas histórias vivessem desde sempre dentro dela à espera do momento certo para serem contadas. Uma escrita que agarra quem lê numa narrativa muito própria, reconhecida como grandes nomes da nossa literatura. É uma leitura que muitas vezes obriga-nos a voltar atrás para um pormenor, uma frase que diz mais e que a personagem não desvendou logo à primeira.



Mário Augusto




Era ao Marido de Agustina, Alberto de Oliveira Luís, que cabia tarefa de primeiro leitor cuidadoso dos manuscritos, transcrevendo depois, à máquina, toda a cadência de palavras, as histórias que ela deixava que a abraçassem no pensamento. É curioso ver nos registos de filmes, em documentários, dos vários que foram feitos sobre a sua obra, a sua forma de escrever sempre à mão, é como olhar para alguém que ouve no silêncio dos outros, um ditado já muito bem alinhado no pensamento e no saber de escritora. Ela escrevia numa cadência rápida e quase sem emendas. Numa das suas obras, Dicionário Imperfeito, refere: «Eu tenho só uma vocação, que é escrever. Usar a palavra, dar-lhe vida, confiar nela para que nela vejam verdades poderosas, como a de sermos destinados a coisas maravilhosas.»

Retomar essa palavra transbordante e a obra viva de Agustina, é o primeiro repto que surge dessa ideia de celebração do centenário do seu nascimento, um pretexto para reler a sua obra. 

Foi ainda em criança que descobriu o que os livros lhe davam, encontrou-os na biblioteca do avô materno, foi por isso muito cedo que começou a ser uma leitora ávida de saber. É ainda na escola – por volta dos 12 anos – que experimenta as primeiras narrativas ditadas pela sua imaginação, são histórias que escreve a partir de estampas antigas que recorta, demonstrando já uma imaginação fértil e bem reconhecida na sala de aula ao criar histórias para aquelas personagens das estampas roubadas a livros e revistas. Duas décadas depois, quando edita o seu primeiro romance em 1948, Mundo Fechado, tinha apenas 26 anos. Mais tarde, em 1954, publica aquela que é considerada uma das suas grandes obras, A Sibila, romance que a consagra e é reconhecidamente a obra com a qual atinge a plena maturidade do seu processo criativo. A ação deste romance gira em torno de uma mulher central numa família do século xix, Quina, é ela a Sibila, que dá o título à obra que percorre a vida da família, evocando acontecimentos reais e marcantes como a Guerra da Patuleia ou as referências ao famoso Zé do Telhado. O romance percorre um século de vivências (1850 a 1950) na região de Amarante, mas geograficamente sente-se toda a região de Entre Douro e Minho.

Agustina é celebrada pelos seus romances, mas sempre foi a escrita em múltiplos formatos e géneros que a apaixonou, fazendo dela uma referência da literatura portuguesa. Os seus primeiros livros foram desde logo elogiados por autores consagrados como Aquilino Ribeiro, Ferreira de Castro e Vitorino Nemésio. 

A extensa obra de Agustina Bessa-Luís, com mais de cinquenta títulos publicados, revela um grande domínio da palavra, não só na sua mais reconhecida carreira de romancista, mas destaca-se, e vale a pena ler, a sua obra de ensaísta, ou a clarividência e sentido crítico das crónicas publicadas em jornais tão diferentes como O Independente ou O Primeiro de Janeiro, do qual, aliás, viria ser diretora durante uma curta temporada. Também por isso foi ainda jornalista, sempre com o seu estilo que surpreende e provoca quem lê. 

Para os grandes estudiosos da literatura, os escritos de Agustina continuam a ser um constante despertar de encantos e surpresas subtis, até mesmo pela sua forma sentida sempre ao correr da pena, onde – e citando os especialistas que a estudam – «percebem-se as influências pós-simbolistas de autores como Raul Brandão na construção de uma linguagem narrativa onde o intuitivo, o simbólico e uma certa sabedoria telúrica e ancestral é transmitida ao leitor numa escrita de caraterísticas aforísticas, conjugando-se com referências de alguns autores franceses como Marcel Proust, nomeadamente no que diz respeito à estruturação espaço temporal da obra, em que a escritora é dona e desenvolve um estilo absolutamente único, paradoxal e enigmático». São os grandes mestres das letras que assim se referem a Agustina Bessa-Luís.


No entanto, para qualquer outro leitor, sem essas análises mais profundas sobre a raiz da sua obra, simplesmente os apaixonados pela leitura e pelos livros, os menos atentos a essa análise mais intrínseca das fontes e referências, diria apenas que Agustina Bessa-Luís pode ser simplesmente (e não é pouco, pela importância que a analogia desperta) a herdeira de Camilo Castelo Branco. Foi uma observadora atenta da sociedade portuguesa num certo sentido, transparecendo nas entrelinhas a sua sofisticada ironia, muitas vezes até impiedosa na forma de criticar esse mundo muito fechado da aristocracia nortenha que ela ia descobrindo e analisava. Das suas histórias, o que se pode dizer é que eram sempre parecidas com a vida, por vezes desconexas, mas também filosóficas pelo desfecho e riqueza dos diálogos criados pela autora. Tudo isso nos é revelado nos romances, contos, peças de teatro, biografias e ensaios. 


A UNIVERSALIDADE DE 

UMA MULHER DO NORTE


Nasceu em Vila Meã, Amarante, em 1922, as memórias do seu espaço de infância são rurais, sempre a norte e com o Douro a correr ao lado ou não muito longe. Essa marca telúrica feita de memórias e histórias contadas, outras tantas vividas e inspiradas, fazem parte do seu rico universo criativo. Diz-se, porém, que o seu instinto e sabedoria vêm dessa força das terras nortenhas por onde andou refletindo muitas vezes e olhando pelas palavras, a sua análise sobre a condição da mulher, bem descrita nos grandes enredos da sua abundante bibliografia. Agustina é uma prosadora de grande qualidade, uma observadora atenta da sociedade, muitas vezes projetada no passado. A avó materna, Lourença, era espanhola, Lourença Agustina Jurado Franco, nascida em Zamora. O pai de Agustina andou pelo Brasil, onde explorou casas de espetáculo e jogo; talvez por essa experiência, mal regressou foi nomeado gerente do casino da Póvoa. A família foi mudando de lugar enquanto crescia – Gaia, Maia, Espinho, Esposende, Águas Santas, entre outras terras. No entanto, a sua relação com a região duriense, onde passava grandes temporadas, marcaria de forma determinante a obra de escrita. 

Muito jovem lê com avidez e encantamento os clássicos da literatura 

espanhola, francesa e inglesa, revelam-se os clássicos, as obras marcantes na sua formação literária. Em 1932, com apenas 10 anos, vai estudar para o Porto que, apesar de breves interregnos, passa a ser a cidade da sua vida. É lá que casa com um jovem estudante de Direito na Universidade de Coimbra, Alberto Luís. A relação começa como num romance, até parece ter saído de uma história de livro, conheceram-se através de um anúncio de jornal que a jovem Agustina mandou publicar em O Primeiro de Janeiro onde referia que procurava uma pessoa culta com quem pudesse corresponder-se. Ao que parece, terão sido os colegas de curso em Coimbra que responderam por ele. Alberto Luís acabou por estabelecer contacto e casaram no Porto a 25 de julho de 1945.

A jovem esposa e escritora, Maria Agustina Ferreira Teixeira Bessa, passou a assinar como Agustina Bessa, acrescentando um hífen e o nome Luís. Talvez celebrando a ligação forte de ambos, na verdade Alberto Luís foi o companheiro inseparável, o leitor dos mil olhos no paciente trabalho de transcrição das folhas manuscritas, inspiradas e alinhadas, quase sempre sem rasura, dos primeiros manuscritos de todos os livros que fizeram a obra da esposa. Tudo o que ela escreveu e publicou foi escrito assim: folhas manuscritas, sem hesitar nas palavras de uma ironia sofisticada e impiedosa que Alberto Luís decifrava e batia à máquina.


ESCREVEU SEMPRE ENQUANTO 

A SAÚDE DEIXOU


Foi uma personalidade desconcertante e avessa a classificações, tanto quanto a sua obra. Numa notável longevidade criativa, Agustina rompe correntes literárias predominantes, pode mesmo dizer-se que sem medo das interpretações, ela vira do avesso estereótipos narrativos e estilísticos.

Se lhe assenta o título da mais nortenha das escritoras portuguesas, a verdade, no entanto, é que a sua geografia humana é universal. Prova disso é que uma parte dos seus livros estão publicados pelo mundo, em alemão, castelhano, dinamarquês, francês, grego e italiano. A Sibila, talvez o seu livro mais famoso, só em língua portuguesa já ultrapassou a vigésima quinta edição.

Os seus retratos das relações humanas e de poder, das suas contradições ou equívocos, não conhecem realmente fronteiras. Simultaneamente enraizada e intemporal, sábia e popular, intérprete do mundo no feminino mas nunca refém das suas trincheiras. Livre e enigmática, observadora e teatral, conservadora atraída pelo escândalo e a agitação. A vaidade não lhe foi estranha e os aplausos também não faltaram. Foi distinguida com grandes prémios nacionais e galardões internacionais. 

Foi membro da Academie Européenne des Sciences, des Arts et des Lettres de Paris, da Academia Brasileira de Letras e da Academia das Ciências de Lisboa. Em 2004 foi distinguida com o mais importante prémio literário da língua portuguesa, o Prémio Camões, e, a 22 de março de 2005, foi doutorada honoris causa pela Universidade do Porto, juntamente com Eugénio de Andrade, por serem «personalidades de prestígio no campo literário, motivadores de vocações e inspiradores de importantes estudos académicos». 

Como escreveu Gonçalo M. Tavares: «Afinal aí estão eles, os livros, a exigirem serem lidos nesta década e nas que aí vêm – os livros de Agustina duram, e Agustina é grande e gloriosa.» 

Em julho de 2006, pouco depois de terminar a sua última obra, A Ronda da Noite, deixou de escrever e retirou-se da vida pública por razões de saúde, tendo sofrido um AVC que a impossibilitou de continuar a escrever. Morreu a 3 de junho de 2019 na sua casa, no Porto, de onde se via o Douro já quase a espraiar-se na foz. 

De si própria disse: «Nasci e adulta e morrerei criança.» 






A OBRA ESCRITA E O CINEMA 

O cineasta Manoel de Oliveira viu nas obras de Agustina Bessa-Luís o talento criativo de escrita que poderia resultar em filmes inesquecíveis e marcantes na obra do realizador. Agustina conhecia de jovem a esposa de Oliveira, era amiga de casa, e manteve a amizade de uma vida nem sempre pacífica e concordante pela forma como Oliveira adaptou ao cinema as suas obras. Foi em 1981 que Manoel de Oliveira adaptou pela primeira vez um livro de Agustina Bessa-Luís, Fanny Owen, que resultou no filme Francisca. É uma história baseada em factos verídicos, aconteceram no Porto do século xix, no meio da juventude boémia, mas intelectual, da qual fazia parte o escritor Camilo Castelo Branco. A vida de um jovem, filho de um oficial inglês, que vive um amor intenso que o arrasta para o fatalismo e a desgraça. 

A partir da adaptação de Fanny Owen, a profícua colaboração do realizador com a escritora prolongou-se ao longo dos anos. Em 1993 adaptou um outro livro, Vale Abraão, com o qual obteve grande reconhecimento e prémios internacionais. 

Dois anos depois, em 1995, de novo Manoel de Oliveira faz nova adaptação de outra obra de Agustina, As Terras do Risco, adaptação livre de que resulta o filme com John Malkovich e Catherine Deneuve O Convento. Estes três filmes foram as mais reconhecidas colaborações de Oliveira com Agustina, mas a cooperação de ambos nos cruzamentos dessas duas artes, a literatura e o cinema, não se ficou por aí. Agustina também escreveu os diálogos de Visita ou Memórias e Confissões, voltando a essa função numa obra de Manoel de Oliveira em 1996, no filme Party. Outro livro de Agustina, Mãe de Um Rio, resultaria no cinema no filme Inquietude, de 1998. A relação da obra da escritora com o cinema não se fica apenas pelas produções com a assinatura de Manoel de Oliveira. Em 2008, outro dos seus livros, A Corte do Norte, foi levado ao ecrã por João Botelho, e neste ano em que se celebra o centenário do seu nascimento uma das suas obras mais marcantes, A Sibila, estreia com produção de Paulo Branco. 

Este constante aproximar da sedução das imagens às palavras de Agustina confirma a sua arte e dom de entrecruzar as múltiplas linhas narrativas da sua imaginação, tendo sido ela própria uma cinéfila com um olhar atentamente crítico. 




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