FRANK PLUYM e a sua mulher Monique têm uma oficina na cidade holandesa de Nimega, apenas a alguns quilómetros da fronteira com a Alemanha. No entanto, sempre que tem algum tempo livre, Frank pode ser encontrado na casa que está a construir junto ao rio Waal, nas margens do qual se ergue Nimega.
Numa manhã dos finais do outono, Frank está na que virá a ser a magnífica sala de estar, no último andar do edifício de três pisos. Sai para os andaimes, e olha para além do dique que fica diretamente em frente da sua casa e para as águas do rio que ele contém.
Frank, de 55 anos, adora a vista. «Posso ver o porto de Nimega, e chegam imensos barcos todos os dias. São uma maravilha.»
Então como se sente acerca de mudar para a nova casa? As pontas do bigode prateado de Frank viram-se para cima quando sorri: «Sinto-me otimamente.»
A resposta não é tão óbvia como parece. Frank, Monique e os seus quatro filhos, com idades entre os 16 e os 23, não se mudaram porque assim escolheram. Estavam muito felizes a viver e a trabalhar na aldeia de Lent, na margem norte do Waal.
Mas a casa e a garagem antigas já não existem, nem a rua onde elas ficavam. Foram demolidas para abrir caminho para um novo canal com 200 metros de largura, que divide o Waal em dois quando passa por Nimega.
Este é um dos 34 projetos que compõem um programa de 2,2 mil milhões de euros chamado Espaço para o Rio.
Uma boa parte da Holanda fica na região do delta onde o Reno, os seus afluentes Waal e Issel, e o rio Mosa (ou Meuse) atravessam terras baixas, correndo na direção do mar. Durante séculos, estes rios foram controlados por meio de diques, mas isto é como tentar meter um homem gordo num corpete: de vez em quando, rebenta.
Muito melhor, decidiram agora os holandeses, é aceitar que a cheia é um fenómeno natural, embora seja possível amenizar o seu impacto alargando os rios para desacelerar o fluxo de água e criar terras de aluvião para as quais o excesso de água possa ser drenado. Graças ao programa Espaço para o Rio, nos finais de 2015 será possível a um milhão de metros cúbicos de água por minuto descer o Reno e os seus afluentes sem ameaçar vidas humanas.
Entretanto, a própria existência da Holanda depende de conseguir impedir que o mar do Norte leve todo o oeste do país.
Entre outras iniciativas, Amesterdão está atualmente a fortalecer os últimos pontos fracos na sua costa norte, criando as Novas Dunas Hondsbossche, um enorme projeto de oito quilómetros que implica bombear 35 milhões de metros cúbicos de areia do fundo do mar para esculpir a que será a mais longa duna ininterrupta da Europa – concebida para proteger a terra do mar do Norte durante mais 50 anos.
HENK OVINK, UM ESPECIALISTA em controlo de cheias e gestão de desastres e que está a trabalhar para o governo holandês, tem o seu escritório em Haia. Seria inundado se os diques marítimos cedessem? «Bem, estou no segundo andar, por isso safava-me», diz com um sorriso retorcido. «Mas não seria tão bom para as pessoas de baixo, porque o edifício seria rodeado de água. Nos Países Baixos, 75% da economia corre o risco de inundação. Por isso, se não lidarmos com esse risco, mais vale mudarmo-nos todos para a Alemanha.»
Os holandeses vivem num sistema com 3500 «pólders», áreas de terra conquistada ao mar, rodeada por diques. Mas esta não é terra seca, como sucede no resto da Europa. Uma boa parte da Holanda está na verdade abaixo do nível do mar, o que significa que a água sobe naturalmente até à superfície, e mesmo a terra aparentemente seca é cruzada por canais e valas de drenagem, que removem a água que tenta permanentemente chegar à superfície.
Koen Olthuis é um arquiteto holandês que já constrói sobre água há 12 anos, projetando casas, resorts e até uma mesquita sobre água para clientes na Holanda, Maldivas, Florida e Dubai. «A natureza é tão forte que devíamos ter medo dela, mas se trabalhamos com a natureza, podem acontecer coisas fantásticas», diz.
«Há três razões para se construir sobre água. A primeira é o espaço. Os arquitetos estão sempre à procura de espaço para construir; então porque não usar a água? A segunda é a segurança. Se uma cidade é ameaçada por cheias, o lugar mais seguro para se estar é em cima da água. Mas a chave de tudo é a flexibilidade. As casas são feitas para durar 70 anos, mas passados 20 anos uma casa já não é adequada à forma como as pessoas vivem. Por isso as casas são demolidas, deitando-se fora 50 anos da sua esperança de vida. Mas uma casa flutuante pode ser deslocada para outro lado, onde ainda terá valor.»
Koen Olthuis considera esta atitude inovadora tipicamente holandesa. «O que as pessoas esquecem é que a Holanda é um país artificial», diz, apontando para os canais que passam pelo centro histórico da sua cidade natal de Delft.
«Atua tal qual uma máquina. Bombeamos água diariamente, 24 horas por dia, sete dias por semana; e, se pararmos de bombear, após duas ou três semanas a água sobe por todo o lado na Holanda.»
Os holandeses passaram séculos a conviver com as tentativas de a natureza os levar por água abaixo. Em resultado disso, diz Olthuis, «os holandeses são flexíveis. Sabem que a situação pode mudar a cada momento e que está constantemente a mudar, e estão sempre a adaptar-se a essa nova situação.»
Frank e Monique Pluym são um exemplo. «Quando li os planos (para o alargamento do rio) pela primeira vez, foi um choque», diz Monique. «Nessa altura não consegui imaginar o que o futuro seria e como nos afetaria. Mas pensámos: “Vai acontecer, por isso vamos tirar o melhor partido disso.”»
TENDO SIDO OS MELHORES ALUNOS do mundo na arte de lidar com a água, os holandeses tornam-se agora professores. Tiveram bastante experiência com catástrofes de origem aquática.
Muitos ainda se lembram da inundação do mar do Norte de 1953, causada por uma enorme tempestade, que foi responsável pela perda de 1836 vidas na Holanda, 326 na Grã-Bretanha e 28 na Bélgica.
Henk Ovink passa agora muito do seu tempo nos Estados Unidos, aconselhando agentes municipais, estatais e federais sobre a melhor forma de reconstruírem áreas da sua costa leste devastada pelo furacão Sandy.
«Entre 1991 e 2000 mais de 65 mil pessoas morreram em desastres naturais em todo o mundo, e 90% estavam relacionados com água», explica Henk Ovink. Estas questões tornam-se ainda mais importantes à medida que o aquecimento global começa a afetar o clima. Não só o nível do mar sobe, como podem ocorrer tempestades mais fortes, que trazem mais água sob a forma de torrentes e chuva.
Qual é o risco que corremos? E que lições podemos tirar da experiência dos holandeses?
Brenden Jongman é um investigador na Universidade Livre de Amesterdão que estuda o risco e o custo das cheias e aconselha agências internacionais. Em abril de 2014, contribuiu para um relatório que concluía que o custo das cheias nos países da União Europeia podia crescer da atual média de 4,5 mil milhões por ano para 23 mil milhões em 2050.
Como explica Jongman: «Em grande parte da União Europeia, as cheias vindas do mar não constituem um grande problema como sucede na Holanda. Há um risco maior de cheias de rios, e elas serão muito piores se o nível do mar subir e a água não fluir.»
«As cheias de 2013, quando o Danúbio e o Elba tiveram cheias ao mesmo tempo, custaram 12 mil milhões. Em Itália, houve as cheias do rio Pó. Há cheias na Croácia e na Albânia, em Espanha e em Portugal.»
«A França tem tido muita sorte. Paris é propensa a cheias, mas não sofre uma séria desde 1913. No entanto as defesas não são melhores do que eram então, e outra cheia da mesma escala em Paris causaria danos de 40 mil milhões.»
ENTÃO O QUE PODE SER FEITO para prevenir? «Precisamos de falar de estratégias, colaborações, soluções, em vez de só gritar “Socorro!”», diz Henk Ovink. Os holandeses têm um plano de prevenção de cheias a 100 anos que envolve tudo, desde projetos enormes, como o Espaço para o Rio, a iniciativas urbanas de pequena escala. Estas incluem armazenar água de cheias em caves de escritórios, estacionamentos subterrâneos, e «praças aquáticas»: áreas de recreio com elementos como campos fundos de basquetebol que podem funcionar como minirreservatórios.
Mas, para tornar estas medidas eficazes, diz Henk Ovink, os governos têm de falar com as pessoas que vão ser afetadas pelas possíveis cheias ou pelas medidas que vão ser tomadas para as prevenir. «Manter sempre as portas abertas e não excluir as pessoas só porque pensamos que já sabemos tudo. Não sabemos.»
Stan Fleerakkers, um agricultor de 44 anos do pólder Overdiepse, no sudoeste da Holanda, sabe exatamente como é quando as autoridades não se dão ao trabalho de falar com as pessoas. Há alguns anos, ele e uns vizinhos foram a uma reunião de rotina com técnicos do governo.
Quando chegaram, mostraram-lhes um mapa em que o pólder Overdiepse, que fica entre dois braços do rio Meuse, tinha sido colorido a azul. Enquanto parte do programa Espaço para o Rio, o dique que protegia as suas terras seria diminuído de seis metros para dois metros e meio de altura. Se o rio subisse até essa altura, as suas terras seriam inundadas.
«Era um plano feito num escritório», diz Stan. «Alguém que não nos conhece disse: “Quando o rio precisar de espaço inundamos as quintas. Podemos retirar as pessoas e os animais e reparar as suas casas quando regressarem.”»
Dezassete quintas seriam afetadas. Naturalmente, os seus donos estavam chocados. Mas, tal como os Pluyms, decidiram não lutar contra o plano, mas virá-lo a seu favor.
Dois dos agricultores tiveram a ideia de copiar a primeira de todas as defesas holandesas contras as cheias: os terps ou grandes montes achatados sobre os quais os agricultores construíam as suas casas e estábulos há mil anos. Se os terps tinham mantido as famílias de agricultores e o seu gado a salvo, então agora também podiam proteger o pólder Overdiepse.
Agora o governo começou a ouvir. Aprovou os planos dos agricultores e concordou em pagar pela construção de oito terps, cada um com seis metros de altura e cobrindo dois hectares.
Metade dos agricultores do pólder deixou a zona, mas os Fleerakkers estão entre os que ficaram. Por isso, agora a sua velha casa está enterrada sob um dos terps enquanto vivem e trabalham em cima de outro.
A sua nova casa é espantosa, moderna, de planta aberta, e as suas 120 vacas leiteiras vivem num estábulo novo em folha, onde são ordenhadas por dois robôs computorizados. Como diz Stan a brincar: «As vacas dão mais leite e são mais saudáveis – talvez porque nunca têm de enfrentar um lavrador resmungão!»
Mas ele, Yvonne e os seus três filhos só chegaram a este final feliz depois de anos de complexas negociações financeiras, e mesmo então tiveram de triplicar o seu empréstimo ao banco para financiar todos os novos edifícios e equipamento.
«O Stan é muito positivo. Eu tive noites em que não conseguia dormir», recorda Yvonne. «Havia sempre novas dificuldades. Mas fomos sempre em frente. Agora estou contente por termos decidido ficar aqui. Acho que é um belo local para a família. Somos a primeira quinta da rua, por isso vemos as crianças quando passam a ponte depois da escola e posso começar a fazer-lhes o lanche.»
Quando lhes perguntam que conselho dariam a pessoas de outros países que enfrentam desafios semelhantes à medida que aumenta a necessidade de defesas contra as cheias, Yvonne repete o que se tornou um mantra holandês: «Temos de ser flexíveis na forma de pensar.»
Henk Ovink concorda: «Temos de mudar – não há outra maneira – mas sinto-me otimista.»
Koen Olthuis vai ainda mais longe. «Se estamos ameaçados pela água, o local mais seguro para se estar é sobre a água, é viver com isso. O futuro não é verde, o futuro é azul!»