«O Parque Mayer sempre foi um espaço de liberdade»
Hélder Freire Costa, produtor teatral
TEXTO: MÁRIO COSTA
FOTOS: PAULO ALEXANDRINO
O FUTURO DO PARQUE MAYER depende dos políticos. Eu tenho medo que um dia haja um presidente de Câmara que chegue à cidade e entenda, por exemplo, que o Castelo de S. Jorge já esteja obsoleto, que já ninguém liga à História e que faça daquilo um condomínio de luxo com piscina e bares. Isto é apenas uma imagem para dizer do que tenho medo: da incultura que temos a grassar em todo o mundo, cá também, e que pode destruir isto.»
A frase é de Hélder Freire Costa, histórico produtor teatral que nunca desistiu de trabalhar no Parque Mayer e continua a levar a palco a revista à portuguesa no velhinho Teatro Maria Vitória.
O recente filme de António Pedro Vasconcelos, Parque Mayer, voltou a colocar o velho recinto dos teatros, espaço familiar e de uma certa boémia lisboeta, no centro das conversas e a provocar o interesse de muitas pessoas pela sua história, mas também pelo seu futuro, que teima em sair do papel: «Há um projeto para o Parque Mayer, esse projeto é de cultura. É de pouca cultura mas ainda é de cultura. Mas vai fazer-se? Quando olho para a recuperação do Capitólio interrogo-me com o que foi feito, com a desculpa que o teatro era assim. Eu não me lembro dele assim e comecei a trabalhar lá no anos sessenta. O Capitólio atual não tem nada a ver com aquilo que foi o Capitólio. As cadeiras são desconfortáveis e não tem condições para ser um teatro. Se fizerem o mesmo ao Teatro Variedades, então acaba-se o Parque Mayer. Subsiste o Teatro Maria Vitória, que também é para deitar abaixo porque não cumpre algumas regras obrigatórias para salas de espetáculos. Mas tenho medo!», lamenta Hélder Freire Costa à Selecções do Reader’s Digest.
O PRODUTOR E EMPRESÁRIO teatral de 77 anos é o último dos empresários da revista à portuguesa, que teve no Parque Mayer a sua maior expressão. Teimosamente, não desiste da sua paixão e de continuar a produzir revistas e de as levar à cena, apesar de todas as dificuldades que teve de enfrentar.
Em 54 anos de atividade já produziu 42 revistas, 3 comédias e 3 comédias musicais, por onde passaram os grandes nomes da representação, encenação, escrita, música ou dança. Atualmente leva à cena a revista ParqueMania com Paulo Vasco e Miguel Dias, sob a direção de Flávio Gil.
Testemunha privilegiada da história do Parque Mayer, Hélder Freire Costa tornou-se empresário teatral e produtor por um acaso do destino e porque sempre gostou da vida boémia: «Eu trabalhava na baixa de Lisboa no Banco Lisboa e Açores, hoje Santander. Tratava do expediente mas sem estar em contacto com o público. Mas eu tinha 22 anos, era um miúdo que gostava de me divertir, de ir aos bailaricos nas muitas coletividades que havia em Lisboa, às festas, ao Bairro Alto, que já existia, e tinha um grupo de amigos com quem fazia isso. Aliás, cheguei a pertencer à direção de uma coletividade. Claro que essa vida da noite interferia com o trabalho de manhã, onde nunca chegava a horas. Enquanto tive quem picasse o ponto por mim, tudo correu bem. Mas um dia fui apanhado e despedido», diz, a rir, à Selecções.
Desempregado, resolveu responder a um anúncio de jornal no qual se pedia alguém com experiência e conhecimento em trabalho administrativo. Mal sabia que, ao responder, estava a mudar a sua vida para sempre: «Respondi ao anúncio do Diário de Notícias sem saber para onde era. Sabia apenas as funções que pediam. Um dia chego a casa e a minha mãe diz que tinha ligado um senhor Bastos, do Teatro Capitólio, que queria falar comigo por causa do anúncio. Para mim o Capitólio era um cinema, nem sabia que faziam teatro. Liguei, marcámos uma reunião e lá fui. Conheci então o senhor Giuseppe Bastos, que viria a ser o meu primeiro patrão de teatro e meu mestre na profissão. Comecei como empregado de escritório, a tratar do expediente, a tratar com os bancos porque tinha experiência nessa área, e mais tarde passei a secretário dele», conta à Selecções.
GIUSEPPE BASTOS era um dos mais respeitados empresários teatrais da época, com uma companhia que viajava com frequência para as antigas colónias africanas, onde faziam longas tournées e onde pontuavam as mais importantes vedetas da época.
Foi com Giuseppe Bastos que Hélder Freire Costa aprendeu tudo sobre a nova profissão e iniciou a atividade de produtor: «O Sr. Giuseppe Bastos era uma referência pelos espetáculos grandiosos que produzia no Coliseu, na Fonte Luminosa, etc, e pelas revistas que fazia. Tudo o que sei sobre teatro aprendi com ele, como se deve proceder, o trabalho de cada um, a relação com os atores. Mais tarde passei a secretário dele e, quando regressou a África, fiquei como seu representante e a gerir o Capitólio. Tive a sorte de encontrar uma companhia fantástica com o Eugénio Salvador, o Humberto Madeira e a Anita Guerreiro. Isto em 1964. Depois fui subindo os degraus. O Giuseppe Bastos associou-se mais tarde ao Vasco Morgado e passaram a explorar o Variedades, o Capitólio e o Maria Vitória. Mais tarde, o Vasco Morgado ficou com Variedades e o Capitólio e o Giuseppe Bastos ficou com o Maria Vitória. Em 1975, quando ele morreu, a companhia ficou sem um líder e foram os atores e os outros empregados que me pediram para ficar à frente da companhia porque já tinha experiência. E assim foi. A companhia que hoje tenho é oriunda dessa de 1975. E já cá estou há 54 anos», explicou à Selecções do Reader’s Digest.
Mas não foi apenas a necessidade de um líder para a companhia que levou Hélder Freire Costa a ficar no mundo do teatro e a tornar-se produtor. A paixão falou mais alto: «O teatro tem esta magia, nós ficamos e começamos a gostar. E já o disse várias vezes, houve uma altura em que eu devia ter saído e estive mesmo para sair e retomar a minha vida fora do teatro. Mas por razões diversas e pela minha paixão, fui protelando até que se fez tarde para sair. Já não podia, estava agarrado a isto, já tinha responsabilidades de tal maneira que não podia abandonar a companhia, já dependiam de mim muitas famílias.»
APAIXONADO PELO TEATRO e pela sua magia, Hélder Freire Costa trabalhou de perto com os melhores atores, encenadores, criadores, cenógrafos e autores de teatro de revista. Contudo, nunca deixou de estar nos bastidores, nunca se deixou seduzir pelas tábuas do palco e tornar-se ator ou encenador: «Nunca pensei nisso. Antigamente havia uma tradição no teatro, quando a revista estava prestes a sair de cena as pessoas dos bastidores iam ao palco representar a mesma revista e os atores assistiam. E a última vez que se fez isso foi no Variedades, com a revista Pois, Pois onde estavam o Raul Solnado, a Ivone Silva, o Francisco Nicholson, o Armando Cortez. A mim tocou-me o papel do Nicholson e o maestro Carlos Dias punha as esperanças todas em mim porque me expressava bem, falava alto e decorava bem o texto. Mas no dia da estreia, chego ao palco, olho para as frisas e vejo a Vera Lagoa, jornalista que era crítica teatral. Perdi a voz, esqueci-me do texto e foi um fiasco completo. A parti daí a minha consideração pelos atores agigantou-se. A experiência que tenho de teatro dá-me para encenar. Mas nunca quis», revela durante a conversa.
A morte de Giuseppe Bastos e a passagem de Hélder Freire Costa para a liderança coincidiu com a época conturbada que o país atravessava, o pós-25 de Abril e em vésperas de um verão politicamente quente. À época, a revista à portuguesa estava no auge do sucesso: colocavam-se bilhetes à venda com quinze dias de antecedência e esgotavam num só dia! No palco do Maria Vitória estava em cena a revista Ver, Ouvir e Calar, que depressa se adaptou à realidade s e m c e n s u r a : «Quando aconteceu o 25 de Abril tínhamos essa peça que foi um grande sucesso. No dia seguinte à revolução os autores fizeram uma reunião e mudaram o titulo à revista, passando a chamar-se Ver, Ouvir e Falar, e passou a integrar todos os números que até aí tinham sido cortados pela censura. Mais tarde ainda de Giuseppe Bastos, estreou-se a primeira revista verdadeiramente livre do pós-25 de Abril, que se chamava Até Parece Mentira e que foi um êxito tremendo, esteve um ano e tal em cartaz, fazia duas sessões diárias e matinés aos domingos e feriados e ainda fomos fazer uma digressão ao Porto», recorda à Selecções do Reader’s Digest.
O teatro de revista sempre foi um tipo de teatro de crítica social e política, de dizer a crítica de uma forma dissimulada, nas entrelinhas. Mas com passar dos anos e o fim da censura foi perdendo audiência, e foi mesmo rotulado por muitos como uma forma de teatro menor.
Hélder Freire Costa não pode estar mais em desacordo: «Há muita gente que ainda pensa assim. O nosso povo ainda está atrasado culturalmente, ainda há muitos analfabetos em Portugal, ainda há uma geração que veio do passado, que não estudou. Mas, felizmente, as novas gerações começam a vir ao teatro de revista e gostam do que veem.»
Hélder Freire Costa admite, no entanto, que para alguma imagem negativa da revista terão contribuído os excessos de linguagem e alguns excessos de liberdade criativa no pós-25 de Abril, com revistas extremamente politizadas. Um cenário que ficou no passado até porque, segundo ele, o teatro de revista é um tipo de teatro de crítica mas não vale tudo: «Podemos dizer tudo mas não podemos ofender as pessoas. A liberdade não permite tudo, não permite ofender. Podemos criticar mas com humor, ironia, com inteligência. Mesmo um palavrão, caso seja dito, está devidamente defendido no texto. Não pode haver ofensa gratuita», defende.
AO LONGO DO 54 ANOS que leva de atividade no Parque Mayer, Hélder Freire Costa teve de enfrentar várias crises, principalmente financeiras, mas nenhuma tão violenta como a de 2011, que o obrigou a reduzir a dimensão e os custos de produção de forma drástica: «Foi a pior crise que tive aqui no Parque Mayer. Enterrei aqui muito dinheiro, fiquei a dever a muitas pessoas, mas agora já quase não tenho dívidas, tenho vindo a pagar tudo. Não despedi ninguém, levei a revista que tinha em cena até ao fim. Mas as produções que vieram a seguir foram reduzidas. Deixei de ter orquestra, o elenco foi reduzido e os ordenados também para evitar fechar a porta. Mas, felizmente, conseguimos recuperar.»
E se houve alturas em que esteve de luto pela situação do Parque Mayer, onde teimosamente continua a fazer teatro, Hélder Freire Costa acredita que o futuro só pode trazer um rejuvenescimento do espaço: «Tenho esperança. O Parque Mayer foi sempre o que cada época obrigou a que fosse. E foi sempre um espaço de liberdade, de criatividade, onde se fizeram grandes talentos. Mas continuo a acreditar.»