TINHA TUDO para se considerar feliz e para se sentir bem na vida. Jovem, saudável, a trabalhar na área que sempre quis, João da Silva, jornalista, 37 anos, viu a sua vida ficar de pernas para o ar de um dia para o outro: foi-lhe diagnosticado um cancro nos testículos.
Era o início de um calvário de três longos e sofridos anos. Após o diagnóstico, submeteu-se a uma cirurgia de remoção do tumor e fez quimioterapia. Mas a doença voltou passado pouco tempo. Voltou a fazer tratamentos, e voltou a debelar a doença. E quando tudo parecia estar para trás das costas, o cancro regressou, e só foi dominado com um autotransplante de medula óssea.
Seis anos passados, João da Silva está clinicamente curado, e decidiu passar a livro a sua experiência.
O Sofrimento Pode Esperar é o relato diário de uma luta contra a doença, mas, acima de tudo, um relato de sobrevivência. E de força. Uma força que João da Silva não sabe onde foi buscar.
«Não sei de facto. Talvez à minha família e aos meus amigos. E talvez ao meu otimismo. Lembro-me de que as pessoas diziam que eu estava sempre a sorrir e sempre muito otimista. Com o passar dos anos, começo a achar que o riso, o sorriso e o otimismo são algumas das nossas melhores armas contra o infortúnio», diz às Selecções do Reader’s Digest.
Ao contrário de muitos outros doentes oncológicos, João da Silva encarou com relativa calma a notícia de que tinha um cancro, relativizando o facto. Uma reação algo atípica, talvez fruto desse permanente otimismo.
«Quando me disseram o diagnóstico, não tive logo a noção do que estava a acontecer. Só depois, com o passar do tempo, e principalmente com os tratamentos, é que o diagnóstico começou a pesar», admite.
No início do longo calvário, João da Silva não pensava que poderia ter um cancro.
«O cancro para mim era uma coisa distante, porque antigamente não se falava muito. Falava-se mais em doença prolongada. Ainda hoje há pessoas que não dizem a palavra “cancro”. Houve pessoas, até amigos de infância, que se afastaram de mim na altura em que tive cancro. A sensação com que fiquei foi que parecia uma coisa que se podia pegar ou contagiar», lamenta.
O cancro continua a ser um tema tabu para muitas pessoas, provocando as mais variadas reações. Se houve amigos que pura e simplesmente se afastaram, outros houve que lhe disseram que não sabiam como lidar com ele e com a doença.
«Houve pessoas que me disseram que tinham muita dificuldade em lidar com isto, em olhar para mim, em ver-me doente, não sabiam o que haviam de dizer», confessa.
Desde o início da sua luta contra a doença, João da Silva optou por ter uma atitude muito positiva e muito ativa em relação aos tratamentos. Talvez por i sso, surpreendia muitas vezes quem o visitava no IPO – Instituto Português de Oncologia –, com a sua forma de encarar a doença.
«Algumas pessoas disseram-me que ficavam muito surpreendidas quando iam visitar-me. Sentiam que era importante irem lá dar-me força, e acabavam por sair de lá surpreendidos com a minha atitude. Não que eu fizesse algo diferente dos outros, nada disso, apenas tentava sorrir o mais possível e manter-me tranquilo e esperançoso em que tudo iria melhorar. E isso aconteceu porque eu percebi que precisava de me sentir com energia para combater aquilo, não podia perder tempo a lamentar-me ou a ficar deprimido. Eu tentava não falar muito da doença. E notei que há uma curiosidade mórbida por parte de algumas pessoas em saber pormenores. E há também um prazer mórbido por parte do próprio doente em falar da sua doença. Eu combati isso. Aliás, cheguei a pedir a um companheiro de luta que lá estava comigo que não me falasse da doença dele, pois sou uma pessoa sensível e não era capaz de ficar indiferente. O que eu queria era ter conversas normais que me levassem dali para fora, que me alheassem do que eu estava a passar. E queria canalizar a minha energia para combater a doença, tentando ter uma vida o mais normal possível. Queria ler, escrever, treinar... Não podia gastar energia com preocupações.»
Muitos doentes oncológicos garantem que manter uma atitude positiva e adotar alguns cuidados ajudam à eficácia dos tratamentos. João da Silva é a prova disso. Recusou-se desde o início a que o seu corpo fosse apenas um depósito de químicos, e decidiu que tinha de fazer mais por si mesmo. «Decidi começar a cuidar mais do meu corpo, torná-lo o mais saudável possível. Sempre que podia fazia exercício físico, deixei de comer carne e peixe e tornei-me vegetariano. E até deixei de comer açúcar. E acredito que aquilo que teve maior influência na minha sobrevivência foi conseguir que a minha vida, durante esse período, se aproximasse o mais possível da vida que tinha antes», revela às Selecções.
Embora não tenha passado por uma fase de grande revolta, houve momentos ao longo dos três anos em que se foi abaixo, nomeadamente quando acontece a segunda recidiva e é confrontado com a necessidade de fazer um autotransplante de medula óssea, o que obrigou a um longo período de isolamento. Mas, mesmo aí, conseguia ir buscar força e energia. «Passava o tempo a visualizar a vida fora das paredes do IPO, sempre. Eu sabia que aquilo era uma coisa temporária. A partir de uma certa altura da doença pensei: “Isto não é para mim! Vou ultrapassar isto. Isto é um processo.” E comecei a visualizar o que ia fazer quando saísse dali. E não era a longo prazo, era no imediato, eram coisas mais práticas. Visualizava-me a treinar, a ter uma vida normal, a brincar com o meu filho. Há duas formas de levar a vida: ou nos agarramos ao que mais desejamos ou ao que mais tememos.»
IGUALMENTE FUNDAMENTAL no processo de cura foi a presença do filho, Joãozinho, que na altura do diagnóstico tinha apenas um ano e meio.
«Ele era muito pequeno, mas nunca lhe escondemos nada. Ele sempre soube que eu estava doente, ia visitar-me quando eu estava internado, e sabe exatamente aquilo que tive. E acho que ele tem muito orgulho em mim», diz com um brilho nos olhos.
Depois de ter sobrevivido a três cancros, João da Silva mudou a sua atitude perante a vida. Ao contrário do que se podia pensar, diz-se menos tolerante com falsidade e mentira, ou com aqueles que o querem fazer perder tempo ou desgastar-se com minudências. E desiludiu-se. Com Deus: «Eu era católico, não praticante, e tinha a minha fé. Quando soube que estava doente pela primeira vez, rezei e pedi para Ele me curar. Mas quando a doença regressou, fiquei zangado. Zanguei-me com Deus e questionei-me sobre a razão de aquilo me estar a acontecer a mim, que nunca tinha feito mal a ninguém e que tinha um filho para criar. Era injusto. Então apaguei Deus da minha vida», confessa às Selecções.
Com o livro que escreveu, João da Silva tem como objetivo dar esperança a outras pessoas que possam estar a passar pelo mesmo que ele passou.
«Não sou nenhum herói, apenas relato a minha experiência, o meu exemplo. Nunca senti que estava a fazer uma coisa excecional. Estava apenas a lutar para continuar a viver.»