É TALVEZ O MÉDICO mais conhecido em Portugal; mas, apesar de ter nascido numa família de médicos, a medicina não foi uma escolha automática. O desejo de ser útil e de querer fazer obra ajudaram-no a tomar a decisão. Tornou-se cirurgião pediátrico e cirurgião plástico. O seu currículo é extenso, e a cirurgia acaba por ser o culminar desse desejo de ser útil, pois oferece a certeza de obra feita, com princípio, meio e fim.
Ficou famoso pelas separações de gémeos siameses. Frontal, bate-se pelas suas ideias e convicções. Os leitores das Selecções do Reader’s Digest elegeram-no «Médico de Confiança» – uma distinção que, segundo diz, o apanhou de surpresa: «Representou uma grande honra, que eu sinceramente não esperava, porque não pensava ser tão conhecido. Fiquei surpreendido – agradavelmente surpreendido, como é evidente – com esta distinção. Foi mais uma coisa muito agradável que me sucedeu. E é bom que isso aconteça antes de morrer, porque depois de morrer somos todos óti-mos», declara, com a franqueza que o caracteriza.
António Gentil Martins tem uma longa e bem-sucedida carreira mé- dica, e o reconhecimento dos nos-sos leitores reflete o que a maioria dos portugueses pensa sobre ele e sobre o seu traba-lho. Aliás, o próprio admite que sente esse reconhecimento no dia-a-dia: «Por vezes sou surpreendido por pessoas adultas, já com 40 ou 50 anos, que me vêm dizer que eu os operei quando eram crianças, ou porque ainda me reconhecem, ou porque as mães lhes contaram o que aconteceu, tinham eles meses ou poucos anos. Como é evidente, com a idade atual já não os reconheço, embora por vezes me recorde de alguns. É muito agradável sentir aquele reconhecimento e o facto de os doentes se lembrarem de nós, já que fizemos alguma coisa por eles. Porque no fundo ser médico não é nem melhor nem pior que qualquer outra profissão, tem é de ser diferente. Temos de gostar de ajudar os outros!»
Médico-cirurgião há mais de ses- senta anos, António Gentil Martins entende a prática médica quase como um sacerdócio, como um serviço aos outros, com plena dedicação aos doentes. Para isso, é preciso gos-tar do que se faz. Ter vocação. E é por isso que é extremamente crítico do atual sistema de entrada nas faculdades de medicina. E explica porquê: «Sou totalmente contra a forma de entrada, porque a vocação não serve para nada; hoje só interessa a nota. A nota é certamente importante, porque não se pode ser completamente burro ou não trabalhar. Mas é preciso, sobretudo, gostar de ajudar os outros e daquilo que se faz. Por outro lado, a profissão de médico não é só coisas boas, pois também exige sacrifícios. Mas, por outro lado, oferece uma satisfação que mais nenhuma profissão oferece, que é a de salvar uma vida, a de sentir que fomos realmente úteis.»
O clínico vai mais longe, e diz não ter dúvidas de que a exigência de notas tão altas em medicina afasta muitos candidatos com verdadeira vocação e que poderiam vir a ser excelentes médicos. «Eu escrevi há dez anos um artigo para o jornal Expresso – que depois enviei às faculdades e às universidades –, onde defendi que a vocação é absolutamente essencial. A nota significa que a pessoa tem boa memória, estudou, tem capacidade de trabalho. E isso é muito importante; mas não chega. Tem de ter a vocação associada. Para mim, basta-me que o aluno tenha uma nota de 14 ou 15, o que é já uma nota razoável e que indica que a pessoa tem condições para fazer um bom lugar sob o ponto de vista técnico-científico. Porém, o mais importante, o que eu quero acima de tudo, é seres humanos médicos. Considero que ficar só pelas notas altas é um disparate absoluto», defende Gentil Martins.
Mas, na sua opinião, a par das consequências do erro de só se pensar nas notas altas, existe um outro problema grave, e até hoje não houve uma real intenção de o resolver: a previsível formação de médicos em excesso, a médio e longo prazo, para as reais necessidades do país.
António Gentil Martins tem sido também uma das vozes mais ativas na defesa do direito de escolha dos doentes para serem atendidos onde quiserem dentro da rede do Serviço Nacional de Saúde (SNS). E lamenta: «Fico muito espantado quando vejo os grandes elogios ao SNS e ao seu criador, o Dr. Arnaut. Parece que todos se esqueceram de que ele, ao criar o SNS, disse que não precisava de fazer contas, porque era um imperativo constitucional – e assim criava um serviço universal e gratuito. Claro que depois, passados alguns anos, foi indispensável
alterar a Constituição e dizer que era apenas “tendencialmente” gratuito. E agora continuamos com um sistema ideologicamente condicionado, quando sabemos que há países onde há uma liberdade de escolha que em Portugal não existe. Em Portugal, temos de ir ao Centro de Saúde da freguesia onde moramos, temos de ir ao hospital da zona, e só quando esses não dão resposta é que os utentes são enviados para outros. Recentemente surge uma maior liberdade, mas muito condicionada, e apenas dentro do SNS, o que é manifestamente insuficiente.»
E explica melhor aquilo que defende para Portugal: «Há sistemas, como na Bélgica, em França, na Alemanha, em que a pessoa vai tratar-se onde quiser, sem ser penalizada financeiramente, pois os valores dos atos médicos praticados são controlados. É um sistema de “Seguro Nacional de Saúde”, em vez de ser um sistema como o nosso muito estatizante, porque ideologicamente condicionado. Eu acho que a liberdade que todos falam para justificar a revolução do 25 de Abril de 1974 devia existir também na saúde, para sermos livres de irmos aonde nos sentirmos melhor. O Estado tem de garantir a existência de cuidados de saúde, mas estes não têm necessariamente de ser prestados por ele, pois não lhe compete monopolizar nada. Eu recordo-me de que, quando era presidente da Ordem dos Médicos, as análises clínicas do SNS eram feitas através de acordos (convenções) com os laboratórios privados, porque saíam mais baratas.»
António Gentil Martins tem já lugar cativo na história da medicina em Portugal. Realizou mais de doze mil operações, de entre as quais se des-taca a separação de gémeos siameses viáveis, seis pares ao todo, com nove sobreviventes. Desde muito novo teve a noção de que, independentemente da profissão que viesse a exercer, queria fazer obra, ser útil, usar as mãos. E operar é para ele fazer obra. A cirurgia é para ele a certeza de obra feita. É filho de um médico-cirurgião, António Augusto da Silva Martins, que se notabilizou também no desporto, onde foi o mais completo atleta português de todos os tempos e campeão do mundo de espingarda em 1928 (ver Selecções do Reader’s Digest, edição de agosto de 2016), neto de outro médico, Francisco Soares Branco Gentil, fundador do Instituto Português de Oncologia, que hoje tem o seu nome, e pentaneto de um outro médico, Soares Franco, que foi médico da corte, e que escreveu um livro de poesia, um livro de filosofia, um tratado de agricultura e o primeiro tratado de anatomia português, e foi também fundador da Sociedade de Ciências Médicas de Lisboa, em 1850. Um irmão, Francisco, também enveredou pela cirurgia, e uma irmã, Alice, pela enfermagem, e depois pela psicolo-gia.
Mas apesar de admitir que é oriundo de uma família predestinada para a medicina, Gentil Martins diz que não foi isso que marcou a sua decisão de seguir pelo mesmo caminho: «Eu hesitava muito entre a engenharia e a medicina, mas acima de tudo eu queria era ter a sensação de que fazia qualquer coisa. Um dia, quando ia para o Liceu Pedro Nunes, tinha eu uns 11 ou 12 anos, assisti a um desastre no Largo do Rato: um senhor tinha sido atropelado e estava a esvair-se em sangue no chão, eu não sabia se vivo se morto. Senti que queria ajudar, mas não sabia como, e senti-me totalmente inútil. Foi nesse dia que decidi que ia ser médico.» Dos oito filhos que tem, uma seguiu enfermagem e dois tentaram entrar em medicina, mas os tais «18 e meio» não o permitiram, apesar de terem vocação.
O gosto e a dedicação à medicina e aos doentes levaram Gentil Martins a investigar e a criar técnicas inovadoras, que representaram avanços na prática médica, e que ajudaram a inscrever o seu nome na história da medicina portuguesa. «Eu idealizei mais de uma vintena de técnicas, com a ideia de que não temos de pensar só no que fazemos, mas também na razão do que fazemos. As técnicas vêm descritas nos livros e nas revistas, mas nós temos de pensar se aquela será a melhor técnica, ou se pode- mos melhorá-la ou criar uma alternativa. Penso que temos a obrigação, a todos os níveis e em qualquer profissão, de pensar sempre se aquilo que estamos a fazer está a ser feito da forma melhor e mais correta. E sobretudo temos de pensar e de compreender o “porquê” das coisas que estamos a fazer», explica.
A par do exercício como médico-cirurgião pediátrico, oncologista e plástico, António Gentil Martins foi ainda presidente da Ordem dos Médicos: uma vida dedicada à medicina como serviço aos outros, quer ao nível público, quer ao nível da medicina dita privada. Mas, apesar disso, recusa a ideia de encarar a profissão como um sacerdócio: «A única coisa de que claramente me arrependo e em que considero ter realmente falhado foi o ter sacrificado demais a família – a excecional mulher e os filhos –, perante este desejo de ajudar os outros como médico, e de mudar o Sistema Nacional de Saúde para um modelo diferente, em que os doentes tivessem liberdade de escolha, princípio que continuo a defender intransigentemente, e que a Revolução de Abril, já com 40 anos, surpreendentemente, ainda não permite. Os anos em que estive na Ordem dos Médicos foram demasiado absorventes; mas, para mim, a família continua a ser a base de qualquer sociedade válida», admite Gentil Martins.
No entanto, aos 86 anos, Gentil Martins, que já está reformado, recusa-se a deixar de trabalhar e continua a exercer, embora a um ritmo mais calmo, e considera que o tempo para a reforma tem de ser flexível: «Eu considero que a reforma é uma teoria até certo ponto absurda. Acho que tem de ser flexível, porque o segura que interessa saber é se a pessoa está em boas condições ou não para continuar a trabalhar. No meu caso, se a mão não treme, se vejo bem após ter sido operado às cataratas, se a cabeça está boa e a experiência é bem longa, porque é que não hei de continuar a fazer aquilo de que gosto e que até pode ser útil aos outros? Eu continuo a operar, embora seja evidente que opero agora menos, até porque não trabalho para as companhias seguradoras – razão pela qual é relativamente frequente virem-me consultar apenas para ouvirem uma segunda opinião.» Por isso, insiste: «Acho que a reforma não tem significado; o que tem significado é estar-se bem. Eu podia ter 60 anos e estar gagá de todo!» E declara: «Enquanto tiver condições psicológicas e físicas, vou continuar.»
A forma física que evidencia não será alheia ao facto de ter praticado vários desportos, inclusivamente como atleta olímpico no tiro, nos Jogos Olímpicos de Roma, em 1960, mestre atirador, campeão de Portugal e recordista em carabina de precisão, e campeão com espingarda de guerra. Mas também foi campeão nacional de voleibol pelo Clube Internacional de Futebol (CIF), cam-peão de nacional de juniores, pares-homens, em ténis, introdutor do badminton em Portugal e vice-campeão universitário nos 400 metros planos e 400 metros barreiras. Hoje em dia, faz caminhadas para manter a forma, e realiza uma prova de tiro todos os anos (para que não lhe tirem a licença de porte de arma desportiva).
O gosto pelo desporto foi-lhe incutido pelo exemplo do pai, que, como referimos, foi considerado o mais completo atleta português de sempre. Apesar de ter apenas três meses de idade quando o pai morreu, Gentil Martins tem memórias muito presentes, alimentadas pela mãe extraordinária que teve e que estimulou em todos os filhos a veneração pelo seu exemplo, recordando o que dele foi dito por ocasião do acidente que o vitimou, e que um irmão, João Martins Júnior, consagrou no livro In Memoriam.
Gentil Martins é conhecido pela frontalidade com que defende as suas ideias e convicções, e por se bater por elas contra tudo e contra todos. Ser politicamente correto não é com ele: «Eu não me importo de ser politicamente incorreto. Prefiro dizer o que eu penso que está certo, a dizer o que as pessoas querem ouvir. Não me sinto bem se não digo uma coisa que me apetece dizer, ou não fazer uma crítica que entendo dever fazer.»
Assume-se conservador em muitas áreas, e até radicalmente contra em algumas questões, como a da interrupção voluntária da gravidez ou a da eutanásia. «Há uma coisa que me faz impressão: a nossa Constituição no artigo 24.º diz que “a vida humana é inviolável”. Ora, inviolável é aquilo que não pode ser alterado. Se a vida humana é inviolável, como é que se pode pensar numa eutanásia, por exemplo? A eutanásia é matar uma pessoa! Aliás, a Associação Médica Mundial reiteradamente diz que aos médicos está vedado participar na eutanásia e que é sempre contra a ética médica. E agora vieram umas pessoas muito inteligentes e muito brilhantes dizer que não se sabe quando começa a vida humana. Esqueceram-se de que a fertilização in vitro veio demonstrar que a junção do óvulo com o espermatozoide dá origem a um ovo – de facto um novo ser humano –, que, se tiver condições, se vai transformar num ser que vai nascer, como aconteceu a cada um de nós. Depois de haver a fertilização in vitro, como é que alguém ainda pode afirmar, honestamente e objetivamente, que não sabe quando é que começou a vida humana? Como pode a ideologia obscurecer o pensamento humano?», interroga-se.
Em relação à eutanásia, Gentil Martins defende que a maior parte das pessoas está mal informada e não sabe o que está a discutir. E isso inquina o debate: «Eutanásia é quando um médico mata um doente por qualquer razão, mesmo que a pedido. Outra coisa é a ortotanásia, que acontece quando o doente, em plena consciência, recusa o tratamento proposto, mas que nunca poderá ser imposta, prevalecendo sempre a vontade do doente. Temos finalmente a distanásia, que acontece quando o médico exagera no tratamento, quando doente já não tem possibilidade de sobreviver, e em que é preferível procurar atenuar-lhe o sofrimento, nomeadamente deixando-o ir para casa, onde, nos momentos finais, poderá estar rodeado dos familiares. Prestar cuidados paliativos, sempre. Agora a eutanásia, não muito obrigado.»