NÃO PASSA DAS SEIS DA TARDE quando Mendes Carrilho larga o computador portátil e sai da sua casa soalheira, no Alto Alentejo, para respirar o ar ainda de primavera, que começa a ceder lugar ao verão. As pastagens ao fundo, com a luz de esguelha e o suão a penteá-las, ganham vida e acenam-lhe. «Aqui, a velocidade chega aos 300 megabytes, a Internet está mais rápida do que em qualquer lado. A televisão não bloqueia – nem com os canais HD, uma gravação por cima e ainda a outra caixa a funcionar», diz o ilustrador, que se fixou há uns anos numa aldeia do Alto Alentejo. «Já não sei o que são filas de automóveis. Quando vou a Lisboa, uma vez por mês, porque tem de ser, apanho um autocarro e depois desloco-me de metro. Aqui, na aldeia, ando de bicicleta ou de carro, quando faço compras maiores, e depois não me preocupo mais». O artista fala com a calma de quem, aos 38 anos, nunca se apaixonou pela urbe gigantesca. Ali tem tudo. «Tivemos sorte, uma vez que a aldeia tem fibra, caso contrário os meus encontros via Skype, com som e imagem, iam ser uma trapalhada, como aqueles diretos que as televisões fazem.» Para os 300 habitantes permanentes da aldeia, a fibra oferecida pelas três operadoras chega e sobra. «Depois, há outra grande vantagem: estamos próximos de auto - estradas. Uma para Lisboa, que está a meia hora de caminho, outra para Ma - drid, a uma hora de distância. Diria que trabalho entre duas enormes cidades, o que é ótimo para quem faz o que eu faço.»
MENDES CARRILHO já goza da alta tecnologia que vai invadindo as aldeias e vilas do interior, onde a vida pode ter uma qualidade que os citadinos invejam, mas nem sempre procuram. Em 2010, os argentinos começaram a dar nome aos arrabaldes das cidades, que se iam equipando de melhores vias de comunicação – quer físicas quer tecnológicas. Chamaram-lhe «rururbia», o cruzamento entre as palavras «rural» e «urbano». Esta palavra aparece pela primeira vez em 1991, num estudo de Claudia Barros, professora argentina e doutorada em Geografia. O mundo começava a mudar, com os campos, que eram dormitórios, ponteados de casas solitárias, mas com todo o conforto. É por essa data que a Internet começa a conquistar o mundo. Em dez anos, de 1991 a 2001, a velocidade multiplica-se por cem e, desde então, por mil. «É fundamental, esta ferramenta. Qualquer pessoa que queira ir para o campo precisa de boas condições de comunicação para ter mais facilidade em contactar clientes e fornecedores», diz Hugo Xambre Pereira, engenheiro físico com especialização em Ambiente e Gestão e administrador executivo da empresa Águas do Tejo Atlântico. «Defendo, há muito tempo, que os setores que não têm necessidade de uma presença física deviam ir para os meios rurais. Um dia, enquanto responsável autárquico, sugeri que uma câmara municipal instalasse fibra ótica em todo o concelho. Isso iria atrair postos de trabalho. Estar em Gouveia, por exemplo, e poder ter um centro de atendimento que comunique com o mundo inteiro, de Nova Iorque a Londres, trabalhando em tempo real, já não é uma ilusão», sustenta. A verdade é que a fuga para o interior traz vantagens do ponto de vista da qualidade de vida e de trabalho. A tecnologia, disponível a baixo custo, já não está reservada a uma elite, como acontecia antigamente. O historiador Rui F. Baptista sublinha que a história rural sempre sofreu com o afastamento, «porque as vias de comunicação eram inexistentes ou apenas ligavam os grandes centros». «O custo de aquisição de tecnologia avançada, até final do século passado, estava dependente da riqueza – e esta estava sempre concentrada nas cidades, principalmente nas cidades do litoral, onde se juntavam as comunicações terrestre, aérea e marítima.» Mas o fator custo foi determinante. Prossegue o investigador: «Nos campos, os grandes proprietários dispensavam a aquisição de tecnologias novas, ainda que pudessem ser proveitosas para o volume de produção, uma vez que saía mais barato pagar a centenas de jornaleiros do que mandar vir uma máquina de Manchester ou do centro da Europa. O que era verdade desde o tempo da Revolução Industrial manteve-se durante o Estado Novo e mesmo posteriormente.» Um dos novos exemplos do investimento tecnológico é o lagar de uma conhecida empresa de fabrico de azeite, localizado em Ferreira do Alentejo, junto à Herdade do Marmelo, pensado e desenhado pelo arquiteto Ricardo Bak Gordon. Ali, concentram-se as mais recentes tecnologias de produção de um dos artigos mais exportados do país: o azeite. A empresa-mãe, a Nutrinveste, foi fundada por Jorge de Mello, neto de Alfredo da Silva, o homem por trás da CUF que, durante anos, pelas condições já sublinhadas, investiu principalmente na zona de Lisboa. Em 2010, a mudança para o campo tinha sido, finalmente, concretizada. Rui F. Baptista afiança ainda que a ideia de que o campo é um bom lugar é recente e ainda não está totalmente sedimentada. «Há 30 anos, as aldeias tinham apenas um telefone, se o tivessem, e as pessoas eram chamadas à porta do estabelecimento onde estava o aparelho para receberem as chamadas. Hoje, há telefones para tudo e todos, felizmente, mas pode não haver serviços essenciais como medicina de urgência», sublinha, concluindo: «Para os que estão (bem) habituados a ter serviços por perto, como a educação e a proteção social, a deslocação para o campo não depende apenas da Internet, das máquinas de rega por controlo remoto, através de uma aplicação de telemóvel, ou dos painéis de energia solar. Continua a depender, em grande parte, da velha ideia de que o “senhor doutor” está ali à mão.» Para combater a falta de serviços de saúde no interior, a Universidade do Porto tem vindo a estudar a implementação de medidas de telemedicina, integradas no Curso de Informática Médica. A telemedicina, informa a Universidade, pode consistir numa «teleconsulta», realizada através de videoconferência, telefone ou sites de conversação; uma «teleintervenção», em que as tecnologias de informação e a robótica levam a cabo as instruções dadas pelo cirurgião; ou ainda uma «telemonitorização», um sistema de recolha de dados do paciente que está ligado à rede e cujos aparelhos enviam, em tempo real, o seu estado de saúde ao médico, que pode estar a centenas de quilómetros de distância.
HUGO XAMBRE PEREIRA defende que a mudança deve ser feita através de polos empresariais com boas empresas a investir no interior. «Temos cada vez mais pessoas com qualidade de vida no campo. São pessoas exigentes, que se afastam da cidade porque podem. Mas quando lá chegam, exploram sempre muito bem os recursos. Há um projeto muito interessante da empresa Altice, em Proença-a-Nova, que está a juntar centenas de engenheiros de várias especialidades e a desenvolver tecnologia de ponta para o mundo inteiro. Ora, o crescimento demográfico provoca a dinâmica socioeconómica e, logo a seguir, promove a oferta de serviços essenciais», recorda o especialista. Para Xambre Pereira, a «dinâmica dos empreendedores e dos profissionais qualificados» é fundamental para dar uma dimensão verdadeiramente consolidada aos recursos tecnológicos do interior dos países. O investimento privado é tão im portante que a empresa japonesa Sony criou o projeto FutureScapes, que inclui o conceito de HyperVillage , ou «Hipervila». De mãos dadas com criadores de todo o mundo, desde engenheiros a urbanistas, arquitetos, biólogos, pensadores e jornalistas, a definição do movimento é bem clara: «As previsões sugerem que, até 2025, 75% da população mundial viverá em cidades. O que significa isso para as áreas rurais? Imaginamos como as coisas podem ser diferentes para as aldeias e para os espaços rurais. O conceito de HyperVillage explora um estilo de vida rural, high tech e high nature . Autónomo, mas globalmente ligado, é apoiado pelo mais recente software de alta especificação e o melhor hardware. » Este pode ser o primeiro passo para um novo génesis: um mundo onde podemos acordar, como Mendes Carrilho no início da nossa história, a olhar a paisagem e, ao mesmo tempo, a tomar um duche com água da chuva, aproveitada e filtrada por tecnologia de ponta. Um mundo onde podemos fazer torradas com a energia recolhida pelos painéis solares – a mesma energia que carrega o seu veículo elétrico e que o leva ao mercado mais próximo. Ali, as batatas e as cenouras, bem como a carne, são de cultura local, sem químicos nem conservantes artificiais. À sua volta, não estão apenas agricultores, mas especialistas de diversas áreas, que não precisam estar nas grandes cidades para fazerem o seu trabalho, como contabilistas, analistas informáticos, escritores e argumentistas de televisão, comunidades inteiras de pessoas que voltam a olhar os frondosos campos, com o melhor que a nova revolução industrial, conhecida como 4.0, tem.