A última coisa de que Donald Evans se lembra é de gritar, para o piloto sentado ao seu lado: «Sobe!», antes de o monomotor a hélice embater numa montanha baixa, cerca de 50 quilómetros a oeste de McGrath, no Alasca. Depois, num relance, percebeu que o piloto estava morto. E também a mulher sentada atrás de Donald, uma professora popular chamada Julia Walker, residente em Anvik, no Alasca. Donald torceu-se no assento do Cessna 207 de seis lugares e olhou para trás. O avião, pouco maior do que uma carrinha, tinha-se partido em dois contra a encosta da montanha. Não conseguia ver ou ouvir os seus dois filhos, Mckenzie, de oito anos, e Donnie, de dez. A sua mulher, Rosemarie, de 32 anos e grávida de dois meses, estava dobrada, imóvel, no seu lugar. Donald foi invadido por um único, terrível, pensamento. Estão todos mortos.
Cuidando dos feridos Ainda preso ao seu lugar, Donald, de 32 anos, tentou orientar-se. Chovia torrencialmente. Faltavam-lhe alguns dentes. Mais tarde, descobriu que o impacto lhe tinha fraturado a coluna, as pernas, dentes e o maxilar. Depois, Donald ouviu Mckenzie chorar, algures, fora do Cessna destruído. Estava sentada na fila de trás antes da queda, e o impacto tinha-a atirado seis metros para fora do avião. Apesar de Donald ainda não o saber, o braço da filha estava partido e os seus intestinos cortados, possivelmente pelo cinto de segurança. Apesar dos seus ferimentos, Donald rastejou até Mckenzie, que jazia ensopada, à chuva. Preocupado com a hipotermia, Donald tirou as roupas molhadas da filha e embrulhou-a numa colcha que tinham trazido. Juntos, pai e filha arrastaram-se de volta para o avião, onde Rosemarie começava a recuperar os sentidos.
A sua coluna, pés, tornozelos e braço direito tinham sofrido fraturas. Ela estava aterrorizada, receando que o bebé que carregava estivesse, de algum modo, magoado. A única parte do corpo que podia mover era o braço esquerdo, que esticou para fora da janela, tentando sentir atrás de si. Donnie estava algures lá atrás, vivo. Conseguiam agora ouvi-lo a gritar.
Depois do embate, Donnie tinha rolado parcialmente para baixo do avião, antes de as tábuas do chão pararem sobre as suas pernas e cintura, aprisionando-o. «Não havia forma de o conseguir puxar para cima», diz Donald. Içou-se para o topo do avião para cair ao lado do filho. Donald temia que o rapaz pudesse morrer, se não fosse estabilizado e se não lhe elevassem a cabeça. Notou um ramo de salgueiro partido, que provavelmente tinha estalado com o embate. «Consegui pegar naquilo e apoiá-lo», lembra Donald. Depois, descobriu uma ferramenta de poda que tinha trazido e usou-a para cortar as tábuas do chão e impedir que esmagassem Donnie. «Dá mais uns minutos ao papá», dizia ele, confortando o filho. «Vou cortar isto para tu saíres daí.»
Entretanto, Rosemarie ganhava e perdia a consciência, na fila do meio, cuspindo sangue escuro. «Não consigo respirar!», gritou. Donald focou nela a sua atenção.
A adrenalina já se tinha dissipado e ele começava a sentir a dor dos seus ferimentos.
Forçou-se a rastejar de volta para a frente do avião e a afastar o corpo do piloto do da sua mulher.
Uma aventura no Alasca
Donald e Rosemarie dirigiam-se para Anvik, uma aldeia rural no rio Yukon, a 500 quilómetros de Anchorage, para começarem os seus primeiros anos como professores. Era o dia 13 de agosto de 2011.
Cresceram em municípios diferentes, no norte do estado de Nova Iorque. Tinham 15 anos quando se encontraram pela primeira vez, no cinema, em Poughkeepsie, e começaram a namorar. Aos 17 anos, Donald alistou-se nos fuzileiros dos EUA. Durante uma licença de 30 dias, Donald disse a Rosemarie que queria visitar um sítio espetacular. Apanhou um voo para Fort Richardson, perto de Anchorage, no Alasca, num avião militar. «Quatro ou cinco horas depois de aterrar, eu sabia que era aquilo», lembra Donald. Quando voltou para casa, o seu carro tinha matrícula do Alasca.
Após quatro anos nos fuzileiros, Donald alistou- se de novo, desta vez no exército. O casal esperava ser destacado para o Alasca, mas Donald foi, em vez disso, enviado para o Iraque. Quando o seu serviço militar terminou, em 2007, ele e Rosemarie estabeleceram- -se em Wasilla, no Alasca, e inscreveram- se na Universidade de Alaska Pacific. Depois de se licenciarem como professores, foram contratados para partilharem um horário em Blackwell, numa escola primária de duas salas em Anvik.
Com menos de cem pessoas, a aldeia de Anvik situa-se onde a rota sul da Pista da Corrida Iditarod de Cães de Trenó cruza o rio Yukon. Há mais motos de neve do que carrinhas de caixa aberta. Uma alface custa 5,50 dólares.
A família chegou à aldeia em junho de 2011, semanas antes de começar o ano letivo, ansiosa por dar início à sua aventura. O primeiro voo num avião pequeno foi calmo e o tempo estava bom. «Assim que aterrámos, um grande urso negro atravessou a pista e pôs-se de pé», diz Donald. Encontraram-se com Julia Walker, a única outra professora na aldeia. Donnie e Mckenzie fizeram rapidamente amizade com as outras crianças da povoação e Donald passou o verão a montar o novo equipamento do recreio.
À noite, jogavam basquetebol no ginásio da escola.
Uma semana antes do início das aulas, os professores apanharam um voo para a sede de distrito, em McGrath, para uma série de reuniões. Com um palpite, Rosemarie comprou um teste de gravidez em McGrath e confirmou as suas suspeitas. A perspetiva de outro bebé deixou-a, e a Donald, excitada e nervosa. De repente, a decisão de partilhar um só lugar de ensino, em vez de irem para um lugar onde cada um pudesse ter um horário completo, fez mais sentido. Donald poderia ensinar durante a licença de maternidade de Rosemarie. No final da semana, a família embalou mercearias e material escolar no pequeno Cessna e esperou que o tempo permitisse o voo de volta a Anvik. O piloto, Ernie Chase, de 66 anos, tinha crescido em Anvik e voado naquela rota inúmeras vezes. Pouco depois das sete da tarde, decidiu que tinham uma aberta.
O vulto da montanha
Quando o avião se preparava para deixar McGrath, Donald e Rosemarie sentiram, por uma fração de segundo, o arrepio de apreensão familiar a todos os passageiros de avião de lugares remotos. Aguentar-se-ia o tempo? Seria este o voo em que alguma coisa corre mal?
Rosemarie, no primeiro trimestre, sentiu enjoos quando descolaram. O rio Kuskokwim desapareceu, primeiro dezenas e depois centenas de metros mais abaixo. Donald espreitava para ver alces e ursos. As crianças tinham livros. Mesmo com pouca turbulência, Rosemarie vomitou. Julia Walker, a seu lado, ajudou Rosemarie a limpar-se e voltou para o seu iPod.
Poucos minutos depois de descolar, o avião foi envolvido por nuvens. «Isto é bastante mau», lembra-se David de ouvir ao piloto. Só viam branco. Donald apertou o cinto, desapontado. «Desculpa, querida, provavelmente vamos voltar para trás», disse ele a Rosemarie.
«Não há problema», respondeu ela. Chase fez baixar o avião para mais perto do chão, procurando visibilidade. O Cessna subiu e baixou de novo. Então, o piloto deve ter visto alguma coisa à sua esquerda. O avião virou com força para a direita. As nuvens abriram mesmo a tempo de Donald ver a encosta da montanha a encher o para-brisas. «Por favor, meu Deus, protege a minha família», rezou.
Uivos na escuridão
Passara menos de uma hora desde o acidente. Rosemarie ouvia pássaros chilrear. Ainda havia luz, mas estava a ficar frio. Donald rastejou para a frente do avião e tentou estabelecer contacto via rádio para pedir ajuda. Ninguém respondeu. Pressionou o botão do localizador de emergência uma e outra vez.
O dispositivo enviou uma mensagem via satélite para a família do piloto, em Wasilla, às 8h30 da noite.
A companhia de aviação imediatamente lançou aviões para fazer buscas na rota de Chase. O mau tempo abortou a tentativa, mas os pilotos dos outros pequenos aviões na área comunicaram à Guarda Nacional Aérea do Alasca que tinham ouvido um pedido de socorro de um transmissor de localização de emergência.
Donald podia ouvir, mas não ver, os aviões acima das nuvens. A família sabia que estavam a apenas 20 minutos de voo de McGrath. Certamente, em breve ouviriam as hélices de um helicóptero de socorro. A combinação de vento e chuva deixou Donald com mais frio do que alguma vez tinha sentido. A dada altura, antes de cair a noite, ouviu lobos a uivar no nevoeiro. «Todos começaram a gritar», diz. «Eu só suplicava que parassem de gritar.»
O sol pôs-se por volta das 22h45. Os lobos nunca apareceram. Nem o helicóptero.
Um raio de luz
Rosemarie apertou a mão de Donnie e Donald segurou Mckenzie. Quando a noite caiu, Donald chamava a família de poucos em poucos segundos e tentava que respondessem de volta. Temia que eles morressem se adormecessem.
Para se manterem acordados, cantaram um poema infantil que Donald e Rosemarie costumavam ler a Donnie quando era bebé. «Estas pequenas mãos estão juntas em oração. Para te agradecer, Senhor, por estares aí...»
Um HC-130 da Guarda Nacional Aérea deixou Anchorage à 1h25 da manhã, seguindo o sinal do localizador de emergência. Voou sobre o local da queda cerca das três da madrugada. Mas as nuvens por cima impediam a equipa de salvamento de ver os destroços. Duas horas depois, o HC-130 voltou a Anchorage para reabastecer. A família pôde ouvir o avião às voltas. Depois, o silêncio.
Pela manhã, Donald receava que a busca tivesse durado tanto tempo que passasse de uma missão de salvamento para uma missão de recolha. «Não tínhamos muito mais tempo», diz. Encontrou um saco de clementinas que a família tinha comprado em McGrath e atirou uma a cada membro da família. «Tomem, pessoal, isto vai dar um pouquinho de sol às nossas vidas neste momento», disse.
Foi uma última refeição. Depois de comerem, Donald disse à família que podia dormir. «Suponho que ele só queria que ficássemos em paz», diz Rosemarie.
A família não sabia que, às nove da manhã, um helicóptero Pavehawk HH-60 da Guarda Nacional tinha deixado Anchorage para voltar ao local do acidente. O HC-130 reabastecido seguiu-o minutos depois. Menos de cinco minutos depois de comerem as clementinas, a família ouviu o rodar da hélice do helicóptero.
Nascida da tragédia
Socorristas, chegaram ao chão às 11h05 da manhã, depois de uma aberta nas nuvens. Dois socorristas desceram de helicóptero. Outros três saltaram do HC-130 para uma clareira perto.
«Vamos ajudar-vos», disseram os socorristas, enquanto estudavam a situação.
«A minha mulher está grávida, levem- na primeiro», disse-lhes Donald.
A família Evans estava entregue a si mesma há mais de 15 horas quando os guardas içaram Rosemarie, num cesto longo, para o Pavehawk. Foi levada para McGrath, onde esperou que o helicóptero trouxesse o resto da sua família. Depois, foram todos de avião para um hospital em Anchorage.
Os cirurgiões removeram o apêndice de Mckenzie e coseram-lhe os intestinos. Abriram Donnie de orelha a orelha para pôr no devido lugar uma secção do seu crânio. Rosemarie e Donald ficaram em cadeiras de rodas por causa das suas fraturas na coluna e foram informados de que a criança por nascer podia não sobreviver.
À medida que as semanas passaram, os avisos cessaram. Rosemarie – com ferros e parafusos ainda alojados nas costas – deu à luz um bebé saudável, exatamente sete meses após o acidente. O casal chamou à menina Willow [salgueiro], pelo ramo de árvore que Donald usou para salvar o filho, Julia, pela professora que perdeu a vida no acidente, e Grace, «porque é pela graça de Deus que estamos todos aqui», diz Rosemarie.
O caminho em frente
Depois do acidente, os Evans mudaram- se para Searsport, no Maine, para, enquanto convalesciam, ficarem mais perto da família, em Nova Iorque. «Um pedaço de nós ainda está no Alasca e provavelmente estará sempre», conta Rosemarie. «Mas as nossas circunstâncias trouxeram-nos de volta ao Leste.»
Mckenzie e Donnie recuperaram rapidamente dos seus ferimentos e crescem bem no novo ambiente. Donnie gosta muito de correr. Mckenzie, que está a aprender saxofone, adora futebol e andar a cavalo.
Mas as coisas não correram tão bem, fisicamente, para Donald e Rosemarie, embora continuem com uma atitude positiva. Uma série de cirurgias impediu o casal de voltar a trabalhar – sustentam- se com o dinheiro do seguro. «Nunca teremos o uso pleno dos nossos corpos», diz Rosemarie. «Mas escolhemos a felicidade. E resistimos um pelo outro.