O SEGREDO DOS PASTÉIS? O segredo está na massa! Na qualidade, na forma como é trabalhada e na sua textura. Temos de conseguir ler uma carta através dela.» A explicação é de Maria Helena Soares, 61 anos, pasteleira, e que há mais de quarenta anos se dedica ao fabrico de pastéis de Tentúgal.
Maria Helena aprendeu a arte dos pastéis de Tentúgal ainda em criança, através de uma tia que trabalhou em casa de uma senhora ligada ao fabrico dos pastéis de Tentúgal: «Eu era pequenita mas já gostava de ajudar a fazer os pastéis e andava de volta dessa tia. Para chegar à mesa tinham de pôr uns tijolos para ganhar altura», diz a rir à Selecções do Reader’s Digest. Hoje é dona de uma empresa reconhecida em todo o país pela qualidade dos pastéis que fabrica.
A HISTÓRIA DESTES PASTÉIS remonta a 1565 e ao Convento de Nossa Senhora da Natividade, das freiras carmelitas – localizado em Tentúgal e atualmente inativo. Reza a história que no final do século XVI, na época do Natal, uma das freiras resolveu oferecer aos meninos da terra uma massa muito fina com recheio de doce de ovos. Mas esta iguaria também foi oferecida aos benfeitores do convento, às famílias da alta sociedade da região de Coimbra, e depressa ganhou fama. «Alguns relatos dizem que inicialmente estes pastéis eram usados pelas freiras como medicamento, eram dados às crianças doentes. Naquele tempo o açúcar funcionava como medicamento para os problemas respiratórios e para diminuir as carências alimentares», explica Rodrigo Soares, 31 anos, sobrinho de Maria Helena Soares, que se dedica à gestão do negócio.
Os estudantes da Universidade de Coimbra também ajudaram a espalhar a fama dos pastéis, fazendo com que ultrapassasse os limites da freguesia de Tentúgal: «Na altura muitos estudantes da Universidade de Coimbra, que eram pessoas da alta sociedade, ficavam hospedados em quintas e casas senhoriais aqui na terra e iam e vinham todos os dias. E levavam os pastéis para comerem lá, acabando por os dar a conhecer a muita gente», explica Rodrigo Soares.
Mas se até então se tratava de um doce confinado ao espaço conventual, em 1834, com as reformas de Joaquim António de Aguiar, que puseram fim às ordens religiosas, de um dia para o outro as propriedades eclesiásticas e as suas rendas passam para a mão do Estado. Para fazer face às despesas, as feiras decidiram começar a vender os pastéis numa das rodas do convento. Nessa altura tinham o formato de simples palitos. Quando, em 1898, o convento fechou definitivamente, o segredo da confeção e a receita ficaram nas mãos de uma família que vivia nas proximidades e que passou a dedicar-se ao seu fabrico.
«Passaram a ser consumidos por toda a gente, e alguns eram recheados com fruta e doce», afirma Rodrigo Soares. A fama dos pastéis foi-se consolidando mas em 1960 é que se dá a grande explosão, quando foi inaugurada a estrada nacional entre Coimbra e a Figueira da Foz. Os tradicionais passeios domingueiros até à praia implicavam sempre uma paragem em Tentúgal.
Com uma massa feita de farinha e água e recheio de ovos, açúcar e água, ao pastel de Tentúgal também se chamava Pastel Pobre por, segundo Maria Helena Soares, «ser o doce mais pobre em ingredientes e o mais fino no paladar».
Contudo, apesar de ter poucos ingredientes o fabrico desta famosa iguaria implica um ritual com tempos próprios e uma mestria que demora tempo a dominar.
Depois de confecionada a massa, o bolo – nome que se dá à massa nesta fase do processo – é levado para uma sala onde é esticado. Esta sala, ampla, tem o chão coberto com um lençol imaculadamente branco. Na sala fechada apenas se ouve o barulho de uma ventoinha que ajuda a manter a temperatura em níveis estáveis. Uma das pasteleiras, também vestida de branco, atira a o bolo para o centro do lençol. A seguir, com gestos firmes mas delicados, começa a puxar a massa, uma ponta de cada vez. E vai repetindo estes gestos. Várias vezes. Até a massa assentar totalmente sobre o pano e ficar quase transparente. No final, a massa deve ter 0,05 milímetros, ser mais fina que uma folha de papel vegetal. Este processo é importante para não só esticar a massa, mas também para lhe retirar a humidade.
EM 2007 FOI CRIADA a Confraria da Doçaria Conventual de Tentúgal com o objetivo de glorificar a doçaria que, através da existência e permanência das freiras carmelitas, contribuiu para a elevação social, económica e cultural da Tentúgal, para defesa dos produtos e dos produtores, até porque existem imitações: «Claro que existem imitações, mas os verdadeiros são os que são feitos em Tentúgal e respeitam as exigências impostas pela denominação IGP – Indicação Geográfica Protegida. Por exemplo, a farinha, que é de trigo, pura, a melhor do mercado, e que só nós temos», refere Rodrigo Soares.
A qualidade dos produtos é uma das exigências mas o clima, por incrível que pareça, também ajuda: «A proximidade do mar garante temperaturas amenas aqui no Baixo Mondego e a humidade relativa do ar ajudam a obter a qualidade da massa que fazemos», realça Rodrigo Soares.
EMBORA OS PASTÉIS tenham muita procura e a produção chegue para as encomendas, os produtores desta iguaria enfrentam uma problema que pode colocar em causa a sua continuidade, a falta de mão-de-obra: «Eu tenho um grande desgosto se isto acabar porque não há quem queira trabalhar. Este trabalho é duro porque fazemos tudo de um modo tradicional e exige muito esforço físico. Nós temos seis pessoas a trabalhar aqui diariamente, é preciso ter gosto por fazer isto e por aprender», lamenta Maria Helena Soares.
Rodrigo Soares, ao lado, reforça o receio da tia: «Eu estudei na Escola de Hotelaria de Coimbra e, apesar de a escola ficar aqui perto, não há ninguém que queria fazer aqui o seu estágio ou se interesse por esta área», lamenta. Aliás, essa é uma das razões por que tem sido difícil produzir para exportação: «Vendemos em feiras, vendemos em grandes superfícies, áreas de serviço e até no aeroporto, mas não conseguimos produzir para poder exportar ou entrar noutros mercados», revela Rodrigo Soares. Atualmente existem sete produtores registados que empregam cerca de 180 pessoas, maioritariamente mulheres.
Depois de a massa estar seca, com uma agilidade digna de um faquir, uma pasteleira corta-a em folhas mais ou menos do mesmo tamanho, que depois são levadas para a zona onde é colocado o recheio. Com uma agilidade única, Cristina Monteiro, 48 anos, uma das pasteleiras, pega nas folhas frágeis, sobrepõe umas em cima das outras, coloca o recheio de gema de ovo, açúcar, água e canela e dobra-as com gestos rápidos. Junta e cola as pontas com os pingos de manteiga que salpicam de um pincel feito de pena de galinha. Não sabe quantos faz por hora, não tem ideia: «São muitos, mas não faço ideia de quantos são», diz-nos enquanto recheia velozmente mais pastéis e os coloca num tabuleiro. E bastam 20 minutos no forno para ficarem prontos a serem consumidos.
RECEITA
A massa é feita de farinha de trigo e água. A farinha tem de ser da melhor qualidade para que a massa seja resistente e elástica. Depois de repousar, começa a ser esticada até atingir os 0,05 milímetros de espessura. Deixa-se a secar e, quando estiver seca, é cortada em folhas. Sobrepõem-se várias folhas de forma desencontrada. O recheio (gemas de ovo, açúcar, água e um pouco de canela) é colocado no centro e o pastel fechado em forma de palito, «colando-se» as folhas com a ajuda de alguns pingos de manteiga espalhados com uma pena de galinha (para evitar o excesso de gordura). Vai ao forno durante 20 minutos.