ANOITECE E NO MEDITERRÂNEO PROFUNDO um barco afunda-se. O bote de borracha foi concebido para 30 pessoas mas há mais de 100 a bordo, incluindo muitas mulheres e crianças. Várias estão mortas e outras a morrer, intoxicadas com o fumo dos escapes. Entre o aglomerado de corpos, jovens e velhos escorregam debaixo da água, que já chega a meio da embarcação.
Cada um deles propôs-se chegar à Europa para construir uma vida nova e melhor e arriscou tudo para realizar esse sonho. Não há capitão a bordo; nem abrigo, alimentos, água ou, por incrível que pareça, combustível de reserva. Agora, com as nuvens de tempestade a acastelarem-se e as ondas a agitarem-se, a situação parece desesperada. Mas quando o barco está quase submerso ouve-se o ruído de um motor. Um barco aproxima-se. Vozes gritam instruções: mantenham-se sentados, mantenham-se calmos.
«A primeira sensação que temos quando avistamos um barco à deriva ou recebemos um alerta», diz Oscar Camps, «é de alegria porque sabemos que podemos ajudar. Os problemas começam quanto todos estão em segurança a bordo. Há feridos, bebés, problemas com o barco, não há espaço nem para onde ir. Cada missão de salvamento é um drama humano. Nunca sabemos o que vai acontecer».
Camps tem estado envolvido em inúmeros destes dramas humanos. Sabe demasiado bem o preço que os migrantes e refugiados podem pagar no seu desespero para fugir a guerras, perseguições e pobreza e ter uma vida melhor na Europa. Como fundador da Proactiva Open Arms, uma organização sem fins lucrativos dedicada a resgatar quem está em perigo no mar, passou os últimos três anos a salvar homens, mulheres e crianças de se afogarem no Egeu e no Mediterrâneo. Pela última estimativa, o número de vidas salvas pela Proactiva era de 59 395.
OSCAR CAMPS TEM UMA LIGAÇÃO PROFUNDA AO MAR e ao salvamento de vidas. Com 56 anos e pai de quatro filhos, cresceu em Badalona, uma cidade costeira a norte de Barcelona. A sua casa tem vista para o mar na extremidade de uma longa praia. Na outra extremidade estão os escritórios da Proactiva e os barcos usados para salvar os refugiados.
«Em criança habituei-me a vir aqui todos os dias com o meu avô», recorda, enquanto caminhamos pela praia. «Não havia nadadores-salvadores nessa altura, mas um grupo de nadadores mais velhos e fortes costumava vigiar e ele era um deles. Ensinou-me muito sobre o mar, embora só muito mais tarde eu viesse a ter algo que ver com salvar vidas.»
Camps tinha vinte e poucos anos e dirigia um negócio de aluguer de automóveis quando, um dia, foi visitar um amigo e encontrou o porteiro do bloco de apartamentos caído na rua. «Não sabia o que fazer – ele não se mexia. Toquei a todas as campainhas mas ninguém ajudava. Meti-o no carro e levei-o ao hospital. Quando lá cheguei ele já tinha morrido. Isso afetou-me bastante.»
Alguns dias mais tarde inscreveu-se num curso da Cruz Vermelha, o que o levou a trabalhar para a Cruz Vermelha durante seis anos. Em dezembro de 1999 decidiu combinar a resposta a emergências com o seu amor pelo mar e lançou uma empresa de nadadores-salvadores de praia.
A Proactiva tornou-se a mais bem-sucedida empresa de salva-vidas em Espanha, com 600 empregados em quatro locais. A vida de Camps era boa mas, mais uma vez, o sentimento de compaixão e dever iriam mudar-lhe o rumo.
A 2 de setembro de 2015, um barco com refugiados sírios afundou-se no mar Egeu. Camps estava em casa a ver televisão quando viu no noticiário a imagem de um menino de 3 anos, Alan Kurdi, que morreu afogado e cujo corpo tinha dado à costa numa praia turca.
«O meu filho tinha a mesma idade – fiquei muito perturbado. Tinha de fazer algo. Escrevi ao governo espanhol, ao governo grego, a organizações de auxílio, a embaixadas – a toda a gente – a oferecer-me para colocar o nosso equipamento de salvamento e os recursos humanos especializados ao seu dispor. Ninguém respondeu.»
Assim, pegou nas suas poupanças e, com um membro da sua equipa, Gerard Canals, voou para a ilha grega de Lesbos.
Nesse ano, Lesbos tornou-se um dos maiores entrepostos para as pessoas que escapavam à guerra, violência e instabilidade económica no Médio Oriente e na Ásia. Dezenas de milhar chegavam às praias da ilha depois fazerem a curta, mas perigosa, travessia do Egeu desde a Turquia. Centenas afogaram-se a tentar. Quando Camps e Canals chegaram a Lesbos, encontraram o caos.
«DOIS A TRÊS MIL MIGRANTES e refugiados chegavam todos os dias da Turquia. Nenhuma das grandes agências de auxílio estava lá, apenas havia voluntários com a mochila às costas e uma pequena organização local», conta Camps.
«Os refugiados tinham sido instruídos para rasgarem os barcos de borracha antes de chegarem a terra para não serem enviados de volta neles. Os barcos afundavam-se e todos caíam à água. Era o pânico. Podíamos ouvir as pessoas a gritarem por socorro 100 metros ao largo e não havia ninguém a ajudá-las. Era horrível.»
Seguindo os conselhos dos agentes de direitos humanos em Lesbos, Camps rapidamente montou uma ONG de modo a poder ficar a longo prazo. Mais dois dos seus nadadores-salvadores juntaram-se a ele e a seguir mais uma dúzia. Tornaram-se a equipa de operações de salvamento ao longo da rochosa costa norte da ilha. Cerca de 75 mil refugiados chegaram nesse inverno.
«Focámo-nos na água e tentámos garantir que as pessoas não se afogavam. Assim que as colocávamos em terra, voltávamos para a água. Não dormíamos ou comíamos como deve ser, estávamos constantemente molhados e frios e tínhamos golpes por todo o lado.»
Inicialmente tudo o que tinham com eles eram fatos molhados, apitos, barbatanas e camisolas de salva-vidas. «Nadávamos até aos barcos naufragados mas não conseguíamos trazer todas as pessoas. As mães atavam os filhos ao peito para os manterem seguros durante a travessia. Na água, as suas cabeças ficavam abaixo da superfície. Afogavam-se.»
Enquanto conta a experiência, a sua voz vacila. «As pessoas gritavam e sentiam-se exaustas. Tive de decidir em segundos quem salvar. Pegava em duas crianças e quando voltava descobria que no local onde tinha deixado cinco pessoas apenas estavam duas: onde estão as outras? Onde estão os pais? Cada ato tem consequências – e eu irei viver com elas para o resto da minha vida.»
EM MARÇO DE 2016 a União Europeia assinou um acordo, dando à Turquia dinheiro e concessões políticas em troca de um maior controlo das suas fronteiras e da manutenção dos deslocados no país. A rota de fuga dos migrantes pela Grécia foi seriamente reduzida.
Noutro local desenrolava-se outra tragédia humana. Em parte devido à guerra civil na Líbia, o número de migrantes e deslocados que tentavam a bastante mais longa e perigosa rota de 480 quilómetros entre a Líbia e Itália disparou. Em 2016, mais de 181 mil pessoas chegaram a Itália vindas do norte de África. Milhares morreram afogadas.
Camps e a sua equipa focaram-se no Mediterrâneo mas iriam precisar de barcos de salvamento. Através de crowdfunding acabaram por encontrar três embarcações, uma velha traineira de pesca, a Golfo Azzurro, o seu navio-almirante, Open Arms, e um barco chamado Astral. «Era um iate da década de 1970 de um italiano, um playboy», revela Camps com um sorriso irónico. «Precisamente o oposto daquilo que precisávamos, mas usámo-lo para salvar 14 mil vidas durante o verão de 2016.
»Não temos capacidade para manter muitas pessoas nos nossos barcos durante muito tempo. Temos de chamar o Centro de Coordenação de Socorro Marítimo para pedir uma transferência ou permissão para entrar num porto – isso pode levar horas, até dias. Entretanto, temos mais alertas e precisamos de responder. Os barcos sobrelotados podem afundar-se num dia se o tempo virar. Houve alturas em que chegámos e não encontrámos nada.»
Findo o salvamento coloca-se a questão de saber para onde levar os migrantes. Camps deu consigo embrenhado na política da crise – incluindo o argumento de que os barcos que salvam migrantes são um «fator de atração» tanto para os migrantes como para os traficantes.
Entretanto, grupos de direita e partidos políticos populistas opostos à imigração estão a ganhar popularidade na Europa. Os governos da Europa do Sul estão a fechar os seus portos aos navios de socorro.
Nada disto impede as pessoas que fogem a guerras, pobreza e perseguições de tentarem atravessar o Mediterrâneo. No entanto, significa que os barcos da Proactiva, que salvaram refugiados das ondas, sejam desviados dos portos. Devido a esta situação, pessoas com necessidade de cuidados médicos morreram a bordo. Isto deixa Camps furioso.
Segundo um acordo entre a Itália e a Líbia apoiado pela União Europeia, mas condenado pelas Nações Unidas, agora a guarda costeira líbia patrulha os mares, colocando os migrantes que apanha em centros de detenção. Em março passado ameaçou abrir fogo se a tripulação do barco da Proactiva Open Armes não lhes entregasse as mulheres e crianças que se encontravam entre as 218 pessoas que recolheu fora das águas territoriais líbias. A tripulação recusou-se e rumou à Sicília, onde foram acusados de tráfico ilegal e o barco apreendido.
Estas ações foram condenadas pelo diretor de campanhas da Amnistia Internacional para a Europa, Fotis Filippou. «Em vez de serem criminalizadas por tentarem salvar refugiados e migrantes, as ONG que salvam vidas no mar deviam ser apoiadas», disse.
«Já recebi ameaças de morte – em cinco línguas – por socorrer migrantes», revela Camps. Ele e a sua equipa não vão parar de fazer o que consideram correto. «É uma regra da lei internacional que devemos salvar qualquer pessoa em perigo no mar. Estaremos onde eles estiverem.»
CAMPS TEM UM PEQUENO BARCO. Não sai muito com ele mas, quando precisa de estar sozinho para pensar, ancora-o e senta-se nele. «Vemos muitas coisas», revela. «Eu chorei muito ao princípio, ao telefone com amigos, com a minha família. Assim que percebemos como iria ser emocionalmente duro, arranjámos logo apoio.» Agora as equipas de socorro recebem aconselhamento de psicólogos treinados em gestão de crises e stress pós-traumático.
Entre missões, Camps passa o tempo a debater migrantes e migrações, explicando as consequências das más políticas nas vidas concretas, pedindo ajuda, promovendo atitudes, tentando resolver as situações.
«Oscar é um homem de ação e uma pessoa disposta a defender aquilo em que acredita», diz Peter Bouckaert, diretor de emergências da Human Rights Watch. Enquanto espera que os governos encontrem uma solução europeia integrada e duradoura para receber os migrantes, Oscar Camps tenta enfrentar os problemas que levam as pessoas a fazerem as viagens.
A Proactiva Open Arms África já trabalha com instituições parceiras no Gana e no Senegal. Enfatizam os perigos e as oportunidades limitadas que enfrentam os migrantes que tentam uma vida na Europa. Ao mesmo tempo providenciam as ferramentas educacionais e as capacidades que podem ajudar as pessoas a melhorarem as suas vidas nos países de origem.
Os europeus precisam de se habituarem às migrações e a aprenderem a coexistir, argumenta Camps. «As organizações ambientalistas protegem as baleias e o excesso de pesca, mas não há grupos que defendam os direitos humanos no mar. Gostávamos de estar neste buraco negro das rotas de migração marítima por todo o mundo – em países que não aderem à lei internacional e onde não há ninguém que os denuncie, onde as pessoas estão a perder as vidas e não há médicos ou jornalistas para o relatar.»
CAMPS DIZ QUE MUITAS VEZES a tripulação toca música no barco enquanto patrulha os mares. No topo da playlist está Imagine de John Lennon, com a sua visão de um mundo melhor. «Imagina todas as pessoas a viverem a vida em paz/podes dizer que sou um sonhador/mas não sou o único/Espero que um dia te juntes a nós/e o mundo viverá como um só.»
«Somos apenas nadadores-salvadores com dinheiro angariado nas redes sociais», afirma Camps. «Se conseguimos fazer tanto com tão pouco, imagine do que 28 governos são capazes.»