Na história sempre tivemos uma certa vocação para a aventura marítima na descoberta de lugares distantes. Estamos em toda a parte, ou já passámos por lá. É o nosso fado descobrir o mundo, outrora por curiosidade de abrir horizontes ao velho mapa-múndi, outras vezes pela vontade de sobreviver à miséria e procurar outra e melhor vida.
Esta é uma história de emigração das mais ricas e mais desconhecidas da diáspora portuguesa.
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EM AGOSTO DE 1881, chegou à estação do Rossio para uma visita de Estado o penúltimo rei do Havai, vinha das distantes ilhas também conhecidas como Sandwich. El-rei David Kalakaua ficou hospedado no Hotel Bragança, no Rossio. Foi uma visita oficial, por isso o rei D. Luís deu ordens para que lhe preparassem escolta com honrarias e mandou organizar uma receção no palácio da Ajuda, onde agraciou o visitante com a Grã-Cruz da Imaculada Conceição. O Diário de Notícias, na edição do dia seguinte (20 de agosto de 1881), dava conta da chegada do rei Kalakaua, que andava muito longe do seu pequeno reino, no meio do Pacífico, a fazer uma demorada volta ao mundo, consta que terá sido o primeiro soberano a fazer tamanha viagem. Escreveu o repórter do DN: «(...) El-rei David Kalakaua I, é da idade de quarenta cinco anos, alto, robusto, de olhos claros e brilhantes, e fisionomia simpática. Usa barba à inglesa, e na sua educação política e religiosa predominou sempre o elemento inglês, cujo idioma é muito familiar para ele. (...) O rei das ilhas Sandwich pretende negociar um convénio com o governo português, para regular a emigração que se faz das ilhas da Madeira, e dos Açores. Segundo consta da estatística oficial, a colónia de portugueses é das mais numerosas em Honolulu. Portugal não tem ali por enquanto um consulado que possa prestar protecção aos nossos conterrâneos (...)»
Na verdade, já havia um influente encarregado de negócios português e terá sido ele quem promoveu, certamente até no seu próprio interesse comercial, o fluxo migratório da Madeira e dos Açores, que tinha começado com grande intensidade três anos antes desta visita do rei. Até essa altura já tinham feito a viagem alguns milhares de madeirenses a açorianos. O lugar de cônsul informal era ocupado por Jacinto Pereira que, como conselheiro do monarca, por volta de 1876 sugeriu a contratação da mão-de-obra portuguesa, na altura muito necessária nas extensas plantações de cana. Assim se deu o arranque do grande fluxo migratório de ilhéus portugueses para o trabalho nos campos de cana-de-açúcar. Seria depois alargado já no século xx a continentais, em particular alentejanos e transmontanos.
Jacinto Pereira era um açoriano natural do Faial, chegou antes dessa grande leva de famílias, estabeleceu-se como merceeiro em Honolulu e foi uma figura importante na cidade, tendo americanizado o nome ao mudar de Jacinto Pereira para Jason Perry. Ainda hoje aí existe um quarteirão de casas históricas conhecidas como «Perry Block» que foram construídas por ele.
Como cônsul honorário de Portugal em Honolulu, Jason Perry deu conta da chegada ao arquipélago do barco Higflyer que, como ele escreve no relatório consular, atracou em Honolulu a 30 de abril de 1881, fez 131 dias de viagem em alto-mar e desembarcaram 3451 passageiros portugueses. Acrescentava ainda que durante o percurso uma mulher morreu de tísica, uma outra durante o parto e terá desaparecido um homem que caiu ao mar. Morreram ainda no caminho 11 crianças e nasceram 20 bebés.
A terminar a carta, escreve Jason Perry: «(...) Estão muito satisfeitos e dão inteira satisfação aos patrões. Não houve violação da lei.»
O veleiro Higflyer fazia já a sua segunda viagem de transporte de portugueses para as ilhas Sandwich e seguiam quase sempre famílias inteiras, facto confirmado pelo relatório que dava conta de partos, mortes de crianças e mulheres durante o longo percurso que, conforme a época do ano, podia durar até seis meses sempre em alto-mar.
Antes, outros dois veleiros tinham transportado uma grande quantidade de famílias portuguesas. O Priscilla, também de registo alemão, foi o primeiro a embarcar ilhéus e chegou a Honolulu em 1878 levando a bordo 63 homens, 16 mulheres e 35 crianças. Tinham saído todos do Funchal.
ATÉ 1913 HÁ REGISTO de vinte e nove barcos que transportaram milhares de famílias portuguesas. Depois da passagem do rei David Kalakaua por Lisboa e assinados os documentos de apoio à emigração, o número de portugueses que foram chegando ao porto de Honolulu foi sempre aumentando. Em 1883 o navio Bell Rock aportou com 1584 portugueses, entre os quais 606 crianças. No ano seguinte outro veleiro, o Bordeaux, chegou com mais 1250 portugueses, entre eles 200 crianças. Por ano chegavam três ou quatro embarcações cheias de emigrantes lusos, muitos entravam já no Porto ou em Lisboa e depois passavam pelas ilhas, onde o número de viajantes era maior.
Calcula-se que em trinta e seis anos de imigração organizada (de 1878 a 1913) terão chegado de forma legal ao Havai (o que não inclui os clandestinos que se infiltravam nos barcos), 27 mil portugueses, dos quais quase 10 mil crianças que seguiam com as famílias.
Era uma longa e dura viagem que, por falta do canal do Panamá (que já estava em construção), descia todo o oceano Atlântico e subia o Pacífico. Trinta mil quilómetros de mar que só a esperança de melhor vida fazia esquecer. Dos testemunhos vivos que ficaram dessa tormenta, há o registo de dois alentejanos que seguiam com a família. Ana Correia tinha 6 anos na altura da grande viagem e noventa anos depois ainda se lembrava de tudo: «O mar estava muito bravo. A viagem não foi muito boa. A comida era má. Era hot cake, eram umas bolachas como as que eu compro agora para o meu cãozito. Mas a gente tinha que as comer...»
Francisco Cachopo também era uma criança de 6 anos mas recordava-se de tudo quase cem anos depois: «Cheirava mal, andava ali tudo cheio de piolhos. As carnes estragavam-se no porão do barco, não havia frigoríficos e por isso traziam as vacas vivas no barco que se iam matando na viagem para nos dar de comer... Ainda me lembro de uma vez em que eles foram lá matar uma, não lhe acertaram direito e a vaca ferida rebentou com tudo aquilo, e nós crianças todos numa correria a fugir da vaca no barco, um caos!»
A malária, as deficientes condições de acomodação nestes barcos e as muitas dificuldades da viagem matavam muita gente pelo caminho, em particular crianças, cenas que uma vida inteira não apagou. Ao falar disso, Ana Correia fixava em silêncio o olhar no vazio, como se estivesse a rever todas as imagens, as marcas e memórias que lhe ficaram. Os segundos de silêncio pareciam horas de viagem: «Morriam muitos... Crianças, velhos, morria muita gente... e depois foram deitados ao mar. Eu via a deitarem gente ao mar... mortos. A minha mãe teve um filho no barco. Eu acho que era um menino que morreu ao chegar ao Havai. Também na viagem morreram de malária dois dos meus irmãos, uma rapariga e um rapaz, mais pequenos do que eu. Foram atirados ao mar.»
Pelas memórias e testemunhos de quem fez o caminho, percebe-se a tortuosa viagem que por vezes era feita em condições desumanas, com excesso de lotação e tormentas constantes, especialmente ao passar pelo cabo Horn, na interceção do Atlântico com o Pacífico. Era o momento mais duro da viagem, que já ia a meio mas que muitas das vezes, pela tormenta que viviam, parecia mesmo que iria acabar ali. Muitos dos passageiros, os que sabiam escrever, deixavam cartas de despedida. Uma madeirense, Jesuína Martins, que embarcou em Ponta Delgada em 1886 no veleiro Amana, deixou registada numa carta em verso, que enviou para a mãe, como foram os dias de tempestade aflitiva ao dobrar o cabo Horn:
«Os balanços eram tão grandes que a todos faziam gritar
Cremava-se as nossas almas, estamos por confessar.
Faça minha mãe ideia que tamanha aflição...
mais de quinhentas pessoas a gritar dentro de uma embarção. Quando o capitão mandou os passageiros avisar que se pusessem bem com Deus que o navio estava a afundar.»
Não há registo de qualquer naufrágio naquela região durante o período da ida dos portugueses para o Havai, mas há centenas de cartas e testemunhos que relatam a aflição de quem já levava meses de viagem no alto-mar em barcos com péssimas condições. Muitos dos passageiros, quase todos, nunca tinham navegado, alguns nem o mar tinham visto antes.
Partiam à procura de uma nova vida e os engajadores, que passavam pelas aldeias isoladas e pobres, prometiam-lhes muito trabalho e casa farta. Francisco Cachopo, apesar da idade avançada mas com memórias firmes, lembrava-se de ouvir em criança as conversas dos mais velhos que contavam como ali chegaram. «Houve gente que passava por aquelas aldeias ver se os trabalhadores queriam ganhar a vida. Era de graça, não se pagava nada e depois tinham o trabalho... Os contratos incluíam a viagem que se pagava ao longo dos anos desse contrato com os donos das terras. Como podiam trazer mulher e filhos, eles não hesitavam. O ganho não era muito, era um dólar por dia, mas tinham casa, tinham doutor, tinham tudo de graça... e até escola para as crianças. Nas aldeias de onde vinham havia só miséria, e por isso tantos qui- seram partir sem saber para onde.»
Eram trabalhadores dedicados e reconhecidos nas plantações de cana-de-açúcar e rapidamente foram evoluindo na estrutura organizativa das quintas. Outros, logo que podiam e acabavam os contratos estabeleciam-se nas cidades, onde foram ganhando importância e reconhecimento social. Curiosamente, grande parte dos que saíram de Trás-os-Montes e Alentejo não se deram com as ilhas e seguiram logo que possível para a Califórnia ...
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