O SURPREENDENTE de aterrar no Aeroporto de Lisboa é a rapidez com que, indo para sul de carro, damos por nós transportados para o campo profundo. Cheguei numa amena manhã de outubro, em que me esperava o meu velho amigo Martin Earl, e, em poucos minutos, estava a atravessar a Ponte Vasco da Gama, a mais longa da Europa, com os seus mais de 17 quilómetros pelo estuário do Tejo. Imediatamente a seguir, saímos da autoestrada e desacelerámos para o mundo mais antigo e onírico do Alentejo (a palavra significa literalmente para lá do Tejo).
Durante os cinco dias seguintes viajámos entre aldeias medievais caiadas, colinas suaves, fortalezas alcantiladas e uma constelação de vibrantes vinhas modernas. Desde há muito um destino de férias para viajantes económicos, o Alentejo está a tornar-se rapidamente um dos principais destinos vinícolas do mundo.
Estava ali para experienciar as paisagens e a hospitalidade com o meu amigo, que também seria o meu guia. Martin e eu fazíamos parte de um grupo de cinco, agora de meia-idade, que se conheceram na faculdade e se deslumbraram pelo sonho da literatura, permanecendo a sonhar desde então. Mas, ao contrário do resto de nós, Martin, um poeta, tinha «dado em nativo», assentando com uma rapariga portuguesa, e mudara-se para uma vida vivida inteiramente – e permanentemente – noutra língua. Eu estava desejoso de compreender um pouco melhor o que três décadas de exílio voluntário fazem a uma pessoa.
Agora, a 40 minutos do aeroporto, passamos por uma alameda de plátanos salpicada pelo sol, e, atrás deles, filas irregulares e infindáveis de sobreiros. «Por vezes chamo a esta zona “Corktugal”», diz Martin com uma gargalhada. O belíssimo sobreiro vê a sua cortiça ser colhida uma vez em cada dez anos. As florestas em si são uma fonte de receita imensa – 60% do negócio de cortiça do mundo tem origem em Portugal.
Paramos para um café na povoação sonolenta e banhada pelo sol de Montemor-o-Novo. Parecia haver apenas um café. Mas seria um café? O letreiro em cima dizia «Grupo de Pesca Desportiva à Linha de Montemor-o-Novo».
Era o clube de pesca à linha local, explicou Martin, fiel à forma pura do desporto em que a linha é segurada com as mãos, atirada para o fundo e abanada para simular o isco vivo. Os alegres barrigudos locais, sentados cá fora, imediatamente nos acenam para entrar.
O empregado do balcão, entusiasmado, explica-nos que estão à beira de comemorar algo de extraordinário: o tradicional Cante Alentejano, o canto polifónico próprio da região, acaba de ser designado pela UNESCO como Património Imaterial da Humanidade. Melhor ainda, um dos cantores estava ali mesmo para ser homenageado.
Observámos enquanto um empregado oferecia ao cantor – distinguível dos outros clientes apenas pelo seu cabelo pintado de louro – uma bandeja com um cubo branco, aproximadamente do tamanho de um tijolo pequeno.
«Toucinho», disse Martin simplesmente. Em Roma tinha visto tiras daquela substância a serem consumidas como se fossem uma espécie de sushi de bacon, mas isto era um bloco de pura gordura de porco, e assisti espantado enquanto o cantor entalava um guardanapo na gola e começava a comer grandes garfadas com sonoros estalos dos lábios.
Bebemos um pouco do café deliciosamente amargo e seguimos o nosso caminho. A estrada ia para sudoeste, na direção de Espanha, e apanhámos estradas secundárias para melhor saborear o que nos rodeava. Com as janelas abertas, o Fiat soava como uma batedeira. Eucaliptos junto à estrada exalavam um odor delicioso para o ar do princípio de outubro.
Martin e eu pusemos a conversa em dia enquanto os campos de quadrados castanhos subiam e desciam nas janelas. Frequentemente ficávamos encalhados atrás de engenhocas que lembravam cortadores de relva com assento, revestidos por uma carroçaria rudimentar. Estes veículos lentos e soluçantes são conhecidos como «mata-velhos», porque os seus pequenos motores de 50 centímetros cúbicos não exigem carta de condução para serem manobrados e porque são muitas vezes conduzidos – e acidentados – pelos mais velhos.
Aparecemos para o almoço numa pequena vila chamada Redondo, e descobrimos um sítio cheio de potencial chamado Porfírio, com paredes caiadas e vigas no teto. Uma bandeja com entradas saborosas foi rapidamente posta sobre a nossa mesa: azeitonas temperadas com vinagre e ervas, chouriços e duas variedades de queijo fresco. O almoço propriamente dito abriu com uma requintada sopa de cação – o cação é uma espécie de tubarão, de carne branca e doce –, seguido de arroz de pato.
A cozinha portuguesa funciona por um processo de concentração de sabores essenciais ampliados por ingredientes frescos. O arroz de pato é um exemplo clássico desta ampliação pela redução. A tampa de ovo batido por cima do arroz estava salpicada por pedaços assados de entremeada e chouriço incrivelmente apetitosos, ambos vindos de porcos locais. Espetar o garfo através da cobertura liberta um jato de vapor saboroso, e sob o arroz, um filão de pato húmido, escuro, delicioso.
Mas uma última palavra para aquele porco. O animal reina no topo da cadeia alimentar dos menus alentejanos, aproveitado em quase todas as suas partes. A especialidade local é o porco preto, alimentado sobretudo com bolotas que caem das árvores da cortiça, e é apresentado em chouriços, entremea-da e entrecosto, e como agente enriquecedor numa variedade de guisados. O intenso e profundo sabor do animal é devido em parte à dieta rica em bolotas e, como bónus, aquelas impregnam a carne de ácidos oleicos, o mesmo ingrediente bom para o coração encontrado no azeite.
Nos dois dias seguintes, adotamos um ritmo calmo e natural de comer, ver as vistas e beber os vinhos locais, baratos e bem estruturados. Ficamos nas vilas montanhosas de Monsaraz e Marvão. Cada uma construída originalmente como defesa fortificada contra invasões da vizinha Espanha e visíveis dos vales em redor como uma espécie de tiara em terracota. Cada uma é acessível por diversos quilómetros de curvas e contracurvas, e dentro das muralhas espessas há um conjunto de íngremes ruas empedradas, um castelo, um pequeno museu, lojas, restaurantes e vistas panorâmicas.
Mas foi, no entanto, nestas exemplares povoações alcantiladas que senti o peso do negócio do turismo a ofuscar algum do brilho original. Os restaurantes tendiam a ser indiferentes, e os pequenos ateliers e lojas que preenchem as ruelas pareciam cheios sobretudo de kitsch.
Após dois dias regressámos à planície e começámos a seguir os sinais da Rota dos Vinhos. Estes depressa nos levaram à Adega Mayor, um conjunto hipermoderno de cubos e vigas erguido nas colinas e projetado pelo famoso arquiteto Álvaro Siza. Visitámos o edifício engenhosamente construído e provámos alguns vinhos sublimes.
Mas seria ao almoço do dia seguinte que Portugal finalmente ofereceria uma experiência de refeição e bebidas de classe verdadeiramente mundial. Teria lugar na Herdade dos Grous, umavinha e propriedade gigante numa aldeia a sul de Beja, uma povoação com um hotel e restaurante cujos serviços experimentámos.
Na sala de jantar de teto alto, com vistas para as vinhas e para um lago artificial, pedimos o menu de degustação do chefe, acompanhado dos vinhos respetivos. A refeição abriu com uma versão de luxo das entradas típicas, com o sabor de cada pequeno prato de carne, queijo e vegetais tão individua-lizado como os painéis de um vitral. Uma sopa de cação mais leve do que o ar foi seguida de um medalhão de vitela servido em duas pinceladas de molho de mostarda, com batatas em palitos e encimada com rebentos de rabanete e grão-de-bico assado.
Os vinhos emparelhados da Herdade dos Grous começaram com um branco limpo, de palato delicado, e acompanharam a refeição ao longo de um arco de profundidade e complexidade crescentes, que acabou com o ribombar de um tinto Grous Reserva de 2011. O efeito global disto foi uma das grandes viagens culinárias da minha vida.
Depois, falei com Luís Duarte, de 48 anos, o homem responsável pelos vinhos extraordinários que tinha acabado de beber e o único dos produtores de vinhos de Portugal a ser considerado enólogo do ano duas vezes. «Pertenço à primeira geração que estudou a produção de vinhos na escola, profissionalmente», explicou. «Em vez de trabalhar no Douro» – a região de Portugal mais tradicional, e mais a norte – «decidi ir para o sul, para o discreto Alentejo. Foi uma sorte ter entrado na base do crescimento global do vinho e ter cavalgado essa onda».
Quando lhe pergunto a diferença entre os vinhos portugueses e os de outros países, o Sr. Duarte não hesita. «Os vinhos do Chile e da Argentina são demasiado doces», opina. «Se pensa em Espanha, pensa na casta tempranillo. Bem, nós não usamos as mesmas castas que todos os outros usam. Temos 315 variedades diferentes de uvas, muitas delas exclusivamente nossas.» Com um gesto da mão, indicou os copos na nossa mesa. «Quer um vinho equilibrado e aveludado por um bom preço? Pense em Portugal.»
Depois do almoço, passeámos pelas vinhas próximas, com o sol a baixar no céu. O ar estava cheio dos aromas nostálgicos da terra e de relva cortada e dei por mim a lembrar-me do meu próprio quase-exílio em Itália, onde passei um total de oito anos. Ao contrário do Alentejo, a Itália há muito que se acostumou a ser uma espécie de santuário de visitantes, e os seus tesouros turísticos dão muitas vezes uma sensação de requentado, tendo sido visitados tantas vezes que ficaram gastos pela experiência.
Mas Portugal, e em particular o Alentejo, dão uma impressão completamente diferente: a de um lugar – tiran do as terras-mostruário nos montes – ainda a acordar para a sua própria importância mundana e, em resultado disso, ainda vivo e brilhantemente fresco.
Estávamos quase de volta ao edifício principal quando vimos um golden retriever a chegar para nos saudar. O cão foi abordado por um gato de celeiro. Em vez de lutarem, os dois tocaram os narizes. «Por aqui», disse Martin, «toda a gente é tão feliz que até inimigos entre espécies dão um beijo e fazem as pazes». Rimos e voltámos para o carro.
De regresso ao Aeroporto em Lisboa, abracei o meu velho amigo para me despedir. Estava aliviado por tê-lo encontrado em paz no seu país adotivo. Há uma melancolia básica no exílio, uma tristeza que vem do corte das relações com a família, com os hábitos, e o que o poeta Paul Celan chamou «fatal ato único» da língua materna, que pode pesar nos que deram esse passo.
No caso de Martin, esses défices eram compensados por um bom casamento, pela dedicação à sua arte e por um país cujos modos antigos lhe permitiam a concentração que a vertiginosa Nova Iorque lhe teria quase decerto negado. No processo, por coincidência, esse país tinha-me oferecido duas coisas: uma visão reconfortante da adaptabilidade da natureza humana com o tempo, e uma visita ao mágico Alentejo, com algumas da melhores comidas e bebidas da minha vida.