A VIDA NUNCA LHE FOI MÃE. Mas uma madrasta como a das histórias, mulher de nariz adunco, queixo pontiagudo, vestida de preto, azeda, sem pingo de carinho, de afeto, de compaixão. Maria Deotina Lopes, de 52 anos, viveu uma vida-madrasta durante muito tempo. Tempo de mais. Ainda hoje, apesar de ser mais mãe do que nunca, a vida mantém a dureza, a aspereza, que não devia ser própria das mães. Mas hoje, garante ela a sorrir, está ótima. Hoje é feliz. Hoje tem paz.
Nasceu em Santa Catarina, Cabo Verde, numa família de sete filhos, ou melhor, seis, pois um não resistiu ao nascimento. A casa onde vivia não tinha chão de pedra nem de madeira, era chão de terra, como o da rua. «Éramos pobres, claro. Muito pobres. Um dia, uma senhora viu-me ao colo da minha mãe e perguntou-lhe se deixava que eu fosse dormir lá em casa. Que gostava muito de crianças. Que no dia seguinte podia ir-me buscar. Só aquela noite.»
A pergunta era apenas o início do seu inferno.
A mãe assentiu e Maria Deotina foi, mas não ficou apenas uma noite. Ficou 19 anos. Não se sabe se houve algum acordo financeiro por trás desta entrega, aparentemente tão simples e desprendida, de uma filha. Mas a realidade, quando falamos de pobreza como a que Deotina descreve, não tem nada que ver com a realidade a que estamos acostumados e entendemos como «normal». A vida pode ser mesmo muito madrasta e, nesses casos, tudo é possível.
A senhora que recebeu a menina podia até gostar de crianças, mas tinha uma péssima forma de o demonstrar. «A minha infância não foi boa. Fui muito maltratada. Hoje tenho problemas de coluna, tenho dores de cabeça, tenho mazelas no corpo inteiro. Fora as da alma. Essa mulher batia-me tanto, tanto. Na barriga, ao pontapé, com tachos na cabeça, com tudo o que aparecia e por tudo e por nada. Quando o peito me começou a crescer, tentou arrancar-mo à dentada. “Não tens ninguém e por isso eu trato-te como quero.” Sofri muito.»
Maria era uma criança a tomar conta de cinco crianças, que a mulher recebia em casa. Trabalhou muito e, apesar da vida madrasta e das sovas que levou, tem a humildade rara de agradecer: «Agradeço a essa mulher, porque, se hoje sei assinar, devo-o a ela. Se hoje tenho educação, devo-o a ela. Agradeço-lhe mais a ela do que à minha mãe, que só me pariu. O meu pai não me queria dar, queria que eu ficasse. Era um homem branco, filho de português, era muito bonito. Morreu quando eu tinha 11 anos. Sabe, nunca mais tive um encontro com eles, um beijinho dos meus pais. De ninguém! Nunca tive um carinho de ninguém!»
A frase magoa como uma agulha perfurante. O rosto de Deotina fecha-se, os olhos de mulher vivida, de 52 anos de existência, brilham como os de uma criança triste. «A minha mãe tem agora 90 anos e tenta desculpar-se. Sente-se mal quando eu me queixo das dores. Sabe que me deixou ali, indefesa, entregue àquela mulher que tanto me maltratou. A minha vida não foi fácil...»
Aos 19 anos, Maria Deotina começou a sentir-se cansada. Tão fraca que quase não suportava o peso do próprio corpo. Vomitava tudo o que comia, andava pálida como um fantasma, arrastava-se. Decidiu ir ao posto médico, e, quando a enfermeira lhe disse que estava grávida, desmaiou. Quando voltou a si, a primeira coisa que disse foi «Vou-me matar!» A enfermeira agarrou-a e acalmou-a, pois tudo tinha solução. Mas Maria sabia que ou se suicidava ou era a mulher que a matava, com requintes de malvadez.
Ainda assim, não se matou. Foi para casa, aterrorizada. E tinha razões para isso.
Viveu uma noite de horror: «Levei logo uma carga de porrada. Deu-me banho de água fria, toda vestida, não me deixou tirar a roupa, e fiquei sentada numa cadeira, completamente encharcada, toda a noite sem poder adormecer, ou levava logo uma chapada. Mandou-me escrever uma carta à minha mãe, que já estava a viver em Portugal, a contar o sucedido e a dizer que ia ter com ela.»
E assim foi. Apesar de o pai da criança se ter disponibilizado para assumir as responsabilidades, Maria Deotina foi metida num avião para Portugal e, em 1983, chegou a um país diferente, grávida, para os braços de uma mãe que a entregara, ainda menina, nas mãos de uma mulher que lhe deformou o corpo e a alma. Para sempre.
A VIDA CONTINUOU MADRASTA. Deotina não quer entrar em pormenores. A mãe está viva, não adianta falar: o passado é o passado e o que lá vai lá vai. «Não foi um mar de rosas, e é tudo.»
Um ano depois, conheceu o pai da sua segunda filha, Sónia (o primeiro foi um rapaz, Osvaldo Jorge). Foram viver para o Estoril. Deotina especializou-se em trabalho doméstico que, de resto, já dominava desde criança. Começou por limpar escadas, depois limpou uma boîte, e ainda esteve 12 anos a fazer limpezas na RTP. Agora está há oito anos a trabalhar em casas particulares: «Tenho umas patroas muito boas. São mãe e filha. A filha tem três filhos, a Joana, a Matilde e o Rodrigo. Adoro esses miúdos! A vida tornou-se melhor para mim.»
Separou-se do pai da filha seis anos depois, e, quando a filha tinha 13 anos, nascia, de uma terceira relação, Tiago. O seu ai-jesus. O seu benjamim. «O Tiago tem-me dado problemas desde que nasceu, e alegrias na mesma proporção. Teve de nascer mais cedo porque não se desenvolvia. Estava a morrer. E é um miúdo doente. Não há mês em que não vá com ele ao médico duas, três vezes. Sofre de uma inflamação crónica no estômago, tem intolerância à lactose, um calo nas cordas vocais, é seguido em psiquiatria... tudo isto me sai caro e eu ganho 306 euros por mês.»
Maria Deotina faz omeletas sem ovos.
E fez da vida-madrasta-má uma vida-mãe-doce para si e para os filhos. Podia ter repetido o que fizeram com ela. Dizem os especialistas que tendemos a fazer exatamente o que fizeram connosco. Mas Deotina não. Fez o oposto.
O diametralmente oposto. Que o digam dois dos filhos, Sónia, hoje com 26 anos, e Tiago, com 11. Ela primeiro:
«É uma excelente mãe. Teve uma vida horrível e, connosco, sempre foi a mais carinhosa das mães. Nunca quis que tivéssemos uma infância parecida com a dela. Sempre foi muito dedicada, nunca me faltou nada. É uma batalhadora e merece o nosso reconhecimento. Dou-lhe graças pela pessoa que sou hoje. Estudei até ao 12.º ano, e a minha mãe sempre me apoiou. Engravidei quando ainda estava na escola e pensei: não lhe vou dar um desgosto, vou dar-lhe um motivo de orgulho. Fiz testes com o bebé ao colo, nunca desisti. E isso foi tudo porque ela me ensinou a ser lutadora.»
Tiago não se atrapalha: «A minha mãe é a melhor, apesar das dificuldades que teve e tem. Consegue sempre ultrapassar tudo. Tenho boas notas na escola e jogo futebol no Belenenses.
A minha mãe sai tarde do trabalho, mas leva-me três vezes por semana aos treinos, de transportes públicos, e nesses dias chegamos a casa quase à meia-noite. Aos fins de semana ainda tenho os jogos, e ela acompanha-me sempre, apesar de ser a sua folga. Acorda às seis da manhã, para preparar tudo, e lá vamos nós. É uma grande mãe!»
OMELETAS SEM OVOS
Maria Deotina ganha 306 euros por mês, mas estica o orçamento para que não falte nada a ninguém. «Sou pobre mas sou muito controlada. Quero que o Tiago ande bem e limpo-lhe sempre o equipamento, pois não quero que ele esteja sujo. Guardo sempre o abono de família, como se não existisse.
Assim, sempre que ele precisa de alguma coisa, está ali aquele dinheirinho de parte. Não usa umas chuteiras quaisquer porque não quero que o ponham de lado. Ele sabe que somos pobres mas que faço tudo para que ele se sinta bem.» O seu menino de ouro joga muito a sério e anda a ser «namorado» pelo Benfica, pelo Sporting e pelo Porto.
O miúdo, reconhecendo o esforço da mãe, promete: «Eu já lhe disse: se eu vier a ser um grande jogador, vou oferecer-lhe um casarão! Com jacuzzi e tudo!» A mãe ri-se. Ri-se e sonha com essa vida dourada que a fizesse esquecer a vida negra da infância e da adolescência. Esquecer, não, que há coisas impossíveis de se esquecer. Mas, pelo menos, atenuar a dor das lembranças.
A vida foi-lhe madrasta durante muito tempo. Mas o seu coração conseguiu ter a bondade suficiente para dar o amor que não recebeu. Hoje, além de cuidar do filho mais novo e das netas que a filha já lhe deu, ainda olha pela mãe.
Essa mesma mãe que a entregou de bandeja. Porquê? Porque a nobreza de caráter não se verga, nem com o abandono, nem com pancada, nem com vidas madrastas.