VESTIDA COM UM AVENTAL BRANCO e o cabelo amarrado a um lenço que usa na cabeça, Kenza Camara está a lavar vegetais no lava-loiças. Antes de se juntar a uma equipa descasca e corta um molho de cebolas e passa por um carrinho de mão repleto de couves. «No início chorava desalmadamente», diz Kenza, a rir. «Mas depois uma pessoa habitua-se.»
Kenza, uma estudante de Economia Política de 21 anos, viajou para a cidade portuária de Calais, no norte de França, para preparar refeições e separar a roupa doada aos refugiados e migrantes. A maioria vem do Afeganistão, do Médio Oriente e da África Oriental. Esperam chegar à Grã-Bretanha, a apenas 34 quilómetros de distância, através do canal da Mancha.
A trabalhar para a Cozinha Comunitária de Refugiados, Kenza está a ajudar a fazer um frango de caril gigante, com cogumelos e curgetes. Será servido a 500 pessoas nessa noite. A maioria são rapazes novos, que dormem em condições precárias debaixo das pontes e nos campos em redor de Calais.
A cozinha e os barracões cavernosos, onde as tendas e a roupa em segunda mão estão empilhadas em prateleiras, ficam no Auberge des Migrants, um antigo armazém nos arredores da cidade. Foi construído há onze anos por um ex-gerente da construção do Eurotúnel, que ficou chocado com as mortes e ferimentos causados às pessoas que tentavam saltar para cima dos camiões e comboios, ou mesmo infiltrar-se a pé pelo túnel do canal da Mancha.
Quando a crise estava no pico, Calais era conhecida pelo acampamento a que se chamou «Selva», que abrigava cerca de 8000 refugiados e migrantes. Com o tempo, foi erguida uma cidade improvisada, com os seus próprios cafés, mesquitas e barracas de mercado. Não obstante, em outubro de 2016 o governo francês destruiu o campo e expulsou os ocupantes. Alguns foram transferidos para centros de reprocessamento em toda a França.
«Fiquei chocada ao ver imagens do acampamento a ser destruído», diz Kenza. «A minha colega de apartamento, Poppy, já tinha sido voluntária no Auberge e desta vez juntei-me a ela. Queria fazer o que fosse preciso, qualquer coisa, para ajudar.»
Kenza está surpreendida com o facto de o Auberge poder incorporar voluntários que, tal como ela, vieram só por alguns dias. Pagam alguns euros por noite para ficarem em caravanas, num parque de campismo dos arredores. Kenza e Poppy têm dividido o espaço com um professor e um bombeiro da Nova Zelândia. «À noite há um ligeiro ambiente de festa no acampamento mas as pessoas acordam a tempo de ir trabalhar no dia seguinte», diz Kenza. «É impressionante ver como toda a gente é tão dedicada.»
DEPOIS DO PEQUENO-ALMOÇO, os voluntários reúnem-se num círculo grande para alguns exercícios de alongamento e para ouvirem um discurso animador de Laure Pichot, que pertence a um grupo chamado Utopia 56.
Laure, vestida com um poncho de lã e um sorriso grande na cara, agradece aos novos voluntários por terem vindo e enumera as tarefas para o dia. Os novos recrutas são ensinados a defenderem-se de forma educada, mas firme, se as pessoas – incluindo os polícias – se tornarem agressivas. Uma vez por semana os psicólogos oferecem consultas gratuitas aos que estão esgotados devido às histórias angustiantes que ouvem.
Por vezes, os voluntários franceses são atacados por compatriotas por estarem a ajudar os refugiados. «Há bastante xenofobia aqui», diz Pascal Froehly, um ex-professor de quarenta e muitos anos que pertence à instituição de caridade SALAM, em Calais. «Alguns reclamam que há muitos estrangeiros em França e apoiam a extrema-direita. Uma vez, estava a distribuir comida e fiquei com duas costelas partidas graças a um bando de marginais daqui.»
«Costumava beber muito», revela. «E, quando finalmente consegui parar, percebi o quão vazia era a minha vida. O voluntariado dá-me uma razão para sair da cama de manhã.»
Pascal alega que, volta e meia, a polícia leva a cabo invasões de manhã cedo. Confiscam tendas e, por vezes, despejam água para cima dos sacos de cama dos refugiados, para os encorajar a sair. A certa altura, a presidente da Câmara de Calais, Natacha Bouchart, tentou impedir que os movimentos de solidariedade distribuíssem alimentos mas um tribunal regional revogou esta medida.
Até à alteração da lei, que aconteceu em julho passado (2018), Pascal e os outros voluntários arriscaram ser presos, multados e mesmo incorrer em penas de cinco anos de prisão por ajudarem os migrantes. Alguns voluntários de Calais foram presos por carregarem as baterias dos telemóveis dos migrantes. «Eu não sou grande coisa, longe disso», diz Pascal, «mas é impossível ignorar a miséria que nos rodeia nesta cidade».
HÁ VÁRIOS TIPOS DE VOLUNTÁRIOS. Os locais mais perigosos que Lena visita são na «zona cinzenta», a terra de ninguém, que divide as forças militares ucranianas e separatistas nas regiões de Luhansk e Donetsk. Algumas casas não têm eletricidade, gás ou água potável, e o fornecimento de alimentos é escasso.
Lena diz que muitos sentem-se abandonados pelas autoridades e não confiam em organizações pró-governamentais. «Servir como um indivíduo independente, sem quaisquer filiações, revelou-se a maneira mais eficaz de conquistar a credibilidade deles. Eles confiam em mim e nos meus amigos – voluntários e pessoas normais, tal como eles.»
Ela ajuda as famílias a terem acesso a cuidados de saúde e a consultas. Com uma rede de voluntários, Lena organiza campos de férias no verão para as crianças, no oeste da Ucrânia, para que possam ter um pouco de descanso durante algumas semanas.
Até ao momento, Lena sobreviveu a viver das suas economias, de uma bolsa ocasional de uma instituição de caridade internacional e de doações feitas pelos amigos. No entanto, o trabalho tem um preço a pagar. «Oh sim!», exclama Lena. «Perdi muito peso. O meu cabelo era castanho mas com a guerra ficou cinzento e agora tenho de o pintar, apesar de apenas ter 33 anos.» Lena acrescenta que, com o tempo, tornou-se mais realista em relação ao que pode alcançar. «A certa altura, estava sempre a correr de um lugar para o outro, a responder a chamadas a qualquer hora do dia ou da noite, e fiquei completamente esgotada. Agora sei que não posso melhorar a situação de todas as crianças e que preciso de cuidar da minha saúde para conseguir ajudar os outros.»
A MAIOR PARTE DOS VOLUNTÁRIOS adota maneiras muito mais fáceis e menos perigosas de servir as comunidades em que vivem. E o seu compromisso pode não ser de todo altruísta. Ficar em forma enquanto se ajuda os outros é a ideia por detrás de um grupo de corredores urbanos que rapidamente cresceu no Reino Unido. Em vez de correrem quilómetros numa passadeira, os membros da GoodGym canalizam a sua energia para um treino que beneficia as pessoas dos bairros vizinhos.
A instituição de solidariedade foi fundada por Ivo Gormley, que se sentia flácido por comer muita comida de plástico na universidade. Ainda assim, levantar ferro num ginásio parecia-lhe «um desperdício de potencial humano».
Em vez disso, encetou uma corrida diária para entregar um jornal a um pensionista que morava no leste de Londres. A corrida de vinte minutos inspirou-o a criar a instituição de solidariedade GoodGym que, uma década depois, opera em 47 zonas de Inglaterra e do País de Gales. Na GoodGym, os voluntários correm tanto para ajudarem as pessoas idosas que vivem isoladas como para realizarem tarefas físicas para projetos comunitários.
Beth Hoskins é membro há três anos. Beth é cientista clínica no Hospital Pediátrico de Great Ormond Street, em Londres, e passa grande parte do seu dia a olhar para um microscópio. «Em última análise, o que descobri acerca das doenças infantis pode vir a ser útil», diz Beth, «mas não conheço os pacientes cujas amostras analiso. O que eu gosto no voluntariado é de passar o tempo com as pessoas, cara a cara, e ajudá-las a tratarem dos seus jardins ou com os trabalhos em casa».
Como primeiro membro da GoodGym a completar mais de 500 corridas, Beth tornou-se uma espécie de lenda. Estas corridas levaram-na por toda a cidade de Londres – para entregar mantimentos a um banco de alimentos, selecionar roupa para uma instituição de caridade, construir um navio pirata num parque infantil ou ajudar a colocar oito toneladas de pedaços de madeira num parque perto do antigo Estádio Olímpico.
Quando se mudou da capital do Reino Unido para o noroeste de Inglaterra, passou muitas noites sozinha. «O que me faz continuar são os amigos que fiz na GoodGym», revela Beth. «Cruzamo-nos com todos os tipos de pessoas que, de outro modo, não conhecíamos.»
JAN TER HARMSEL também tem um trabalho voluntário que o deixa em forma: passa todas as tardes de sábado a arbitrar e a andar de um lado para o outro num campo de futebol.
A viver em Haia, o atleta de 32 anos começou a arbitrar aos 16. «Achava que conhecia as regras melhor do que o tipo do nosso clube», diz Jan, que trabalha em comunicações on-line.
«Foi assim que começou. Às vezes, quando está a chover e o futebol é de terceira categoria, dou por mim no meio do campo a questionar que raio estou a fazer, mas a maior parte das vezes gosto muito disto.»
Além de despender cinco horas todos os sábados para ser árbitro de equipas de juniores, Jan também passa mais dez a quinze horas por semana a escrever num blogue sobre a arte de ser árbitro do desporto mais popular do mundo. O seu website (dutchreferee. com) tem bastante sucesso entre os árbitros e é especialmente seguido em África, onde, diz Jan, não há grandes oportunidades de treino para os árbitros.
«A minha mulher não me quer vir ver mais», afirma Jan, «porque uma vez, durante um jogo de juniores, quando apitei uma falta um jogador deu um estalo na cara de um adversário. Deu origem a gritos e palavrões e os pais começaram a invadir o campo. Foi o descalabro! A minha mulher ficou surpreendida por eu não querer abdicar do meu tempo livre, não remunerado, quando as coisas podem ficar tão desagradáveis.»
Porém, Jan nunca foi agredido. «Quando sou insultado pelos jogadores, tento transformar isso numa piada. Por exemplo, eu uso óculos e no outro dia um puto chamou-me “quatro olhos” e disse-me para ir ao oftalmologista porque, obviamente, eu não conseguia ver nada. Então, respondi-lhe que ele precisava de ir à loja de desporto comprar chuteiras novas porque não sabia chutar numa bola.»
Dada a quantidade de tempo livre que é necessária, porque é que Jan gosta tanto de ser árbitro voluntário? Jan diz que é o que o mantém em forma física e mental. Mas o que mais o motiva é ajudar a formar «as futuras estrelas do futebol holandês».
Parece que, seja de que modo for, o voluntariado beneficia tanto os voluntários como aqueles que são ajudados. Os médicos e psicoterapeutas sabem há muito que aqueles que dão de si aos outros vivem vidas mais saudáveis e felizes. Estudos sugerem que o voluntariado beneficia a saúde mental e física, tanto dos jovens como dos mais velhos. Em suma, todos ganham.
O filósofo grego Aristóteles considerou que a essência da vida está em «servir os outros e fazer o bem». As pessoas que dão o seu tempo para se dedicarem ao voluntariado certamente concordam.