É uma tarde de domingo de fevereiro em Estrasburgo, a capital da Alsácia e da recém-criada região administrativa de Grand Est, na fronteira com a Alemanha. A cidade é uma mistura fascinante da cultura francesa e alemã, resultado da história frenética da região. Até as placas toponímicas são bilingues. A Rue des Écrivains também é designada Schriwerstubgass no dialeto local, o beco das casas dos escritores.
Foi um dia longo e sinto-me satisfeito por me sentar num restaurante ao estilo parisiense, o que prova que a nacionalidade dividida da cidade se alarga à gastronomia alsaciana. Sim, claro que se pode encontrar foie gras na ementa, o fígado de patos engordados à força e que a maior parte dos países desaprova. Mas também se pode comer jarret de porc, um prato a que os alemães chamam schweinshaxe: pernil de porco assado, servido com sauerkraut (os franceses chamam-lhe choucroute) e uma mostarda alsaciana, de bradar aos céus, com rabanete. Para beber, servem-se vinhos da Alsácia com nomes alemães como Riesling e Gewürztraminer, mas também cerveja de uma cervejaria própria de Estrasburgo, a Fischer. Esta é a cidade onde os franceses bebem cerveja. Mais alemão, impossível.
Escolho o jarret de porc em vez do baeckeoffe, o prato tradicional da Alsácia. Tenho planos para o degustar mais tarde.
NA MANHÃ SEGUINTE, Régine Baumgartner, guia turística, leva-me numa excursão. Régine, cujo nome se pronuncia oficialmente com sotaque francês – Bohmgardnehr –, começa em frente à majestosa catedral medieval de Estrasburgo. O génio por detrás do edifício foi o mestre alemão Erwin von Steinbach mas os construtores, oriundos das cidades francesas de Chartres e Reims, mudaram o estilo de construção de românico para gótico e executaram a belíssima janela em rosácea por cima da entrada principal, típica do estilo do norte de França e que também se encontra na catedral de Chartres, Senlis e Paris. Mas as casas renascentistas ao estilo enxaimel e os telhados altos e inclinados da praça são típicos da arquitetura do sul da Alemanha, em cidades como Nuremberga, enquanto o complexo de museus adjacente, que data do século xviii, instalado num antigo palácio episcopal, é de estilo Luís XV. Há uma razão para isto: estrategicamente localizada entre os rios Ill e Reno, Estrasburgo foi um antigo assentamento romano, diocese, cidade imperial independente e, desde 1681, uma cidade oficialmente francesa, depois alemã, francesa, alemã e novamente francesa.
Vagueámos pelas ruelas estreitas, praças e margens dos canais. O sol brilha, o que cria o ambiente perfeito na cidade que nesta semana celebra o Dia dos Namorados com um festival chamado Estrasburgo Mon Amour, com concertos e uma noite de slows na sala dos casamentos da Câmara Municipal. Tudo se encaixa na perfeição: até a visão de uma jovem noiva e do futuro marido na sessão fotográfica no seu casamento, com o canal e as casas em pano de fundo.
RÉGINE E EU atravessámos uma ponte e deixámos a cidade antiga para entrar numa zona chamada Neustadt, que data do século xix, em torno da Place de l'Université. «Há apenas trinta anos esta zona da cidade não estava incluída nos mapas turísticos. Nem o nome lá estaria», diz Régine, ao lado de um magnífico edifício jugendstil (Arte Nova), erguido por arquitetos alemães no início do século xx. Costumava ser sede da companhia de seguros Germania mas, após a derrota alemã na Primeira Guerra Mundial, o nome foi rapidamente apagado quando a região da Alsácia regressou ao controlo francês. Agora, a empresa chama-se Gallia.
Neustadt, a «cidade nova», foi desenvolvida como projeto de germanização depois da derrota da França na guerra Franco-Prussiana, em 1870. Quando o projeto ficou concluído, por volta de 1910, na realidade a Neustadt triplicou o tamanho de Estrasburgo e era habitada por dezenas de milhar de famílias que vieram de toda a Alemanha, atraídas pela promessa de habitação a preços acessíveis, equipamentos modernos e uma excelente educação a todos os níveis, incluindo a universidade. A Primeira Guerra Mundial acabou com inúmeras mudanças na toponímia, mas também com a expulsão de 100 mil alemães da Alsácia – uma mera nota de rodapé na trágica história do século xx da Europa. Enquanto andamos, Régine aponta os nomes de arquitetos e construtores alemães gravados nas paredes, como se fossem assinaturas de pintores. Esta zona, agora considerada Património Mundial pela UNESCO, é um dos exemplos mais impressionantes e completos da arquitetura alemã do final do século xix e início do século xx, com as suas igrejas neorromânicas, edifícios governamentais, a universidade em estilo neoclássico e as estruturas residenciais de influência orientalista e jugendstil. No edifício principal da universidade estão gravados mais nomes: Schiller, Humboldt, Goethe e outros alemães famosos. No meio deles, encontro apenas no nome do filósofo francês Descartes um modesto reconhecimento dos cento e noventa anos de domínio francês que precederam a conquista alemã. É um testemunho da maneira como os dois lados negaram o legado do outro na cidade e na região, o que fez da população local um eterno joguete e vítima das quezílias entre as distantes Paris e Berlim. Mas criou uma das cidades mais fascinantes da Europa e até uma cozinha original. Numa anterior e breve visita a Estrasburgo, o baeckeoffe pareceu-me um prato que podia servir como a metáfora perfeita para a Alsácia: os elementos alemães são por norma a carne e a batata, mas a adição do vinho branco dá ao prato um toque francês inconfundível. É fácil de experimentar, porque quase todos os restaurantes de Estrasburgo e arredores o servem, mas tenha cuidado! É que há baeckeoffe e Baeckeoffe, tal como há riesling e Riesling.
O CHEF THIERRY SCHWALLER, proprietário do restaurante Finkstuebel, ri quando lhe pergunto a diferença entre um baeckeoffe normal e um Baeckeoffe de topo. A maior parte dos restaurantes para turistas – diz-me – recebe os ingredientes do prato pré-cozinhados. «A única coisa que fazem é aquecer as refeições no micro-ondas.»
Depois mostra-me como se faz. Thierry põe a carne a marinar durante dois dias em vinho branco Riesling e ervas e a seguir dispõe na caçarola de barro camadas consecutivas de batata, vegetais e carne. «Junto sempre cenoura para ajudar a cortar a acidez do vinho», explica. Prossegue camada após acamada, até a caçarola estar mais do que cheia e, no final, rega com a marinada reduzida. «Por cima coloco um bocado de pele de porco, só para dar sabor.»
Depois, fecha a tampa da caçarola, sela-a com massa e vai ao forno durante três horas. O resultado é absolutamente magnífico. «Este é o prato nacional da Alsácia», resume Thierry Schwaller. «Tenho visto, claro, outras caçarolas na Alemanha, mas nenhuma como esta, com vinho.» Enquanto como, penso no que Thierry me contou acerca da história do prato. A palavra baeckeoffe vem do termo alsaciano para «forno de cozer o pão». No passado, as pessoas preparavam o prato em casa e levavam-no ao padeiro à sexta-feira. O padeiro selava a caçarola com massa e depois colocava-a no forno, que ia arrefecendo devagar. Deste modo, a comida só estava pronta no dia seguinte. É inspirado no tradicional prato do Sabá judaico, tcholent, que se prepara de um modo semelhante para evitar cozinhar durante o dia de descanso para os judeus. Isto acrescenta mais um ingrediente fascinante à cultura de miscigenação da cidade e ao seu passado tumultuoso. Estrasburgo foi o palco de um dos primeiros pogroms da Europa, quando centenas de judeus foram considerados culpados pela Peste Negra, em 1349, e queimados em público. Os sobreviventes foram expulsos da cidade.
Esta história terrível, bem como a restante história da cidade, desde o Império Romano até à anexação da Alsácia pelos nazis em 1940 e a sua posterior reintegração na França, está ilustrada com fotografias, objetos e vídeos no Museu Histórico da Cidade de Estrasburgo, que fui visitar na manhã seguinte. A cronologia multimédia acaba com uma apresentação em tom otimista da unificação europeia, simbolizada na nova ponte para a Alemanha, sobre o Reno, e a presença na cidade de importantes instituições europeias: o Parlamento Europeu, o Conselho da Europa e o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Se há uma coisa que esta apresentação sublinha é o significado simbólico de Estrasburgo como sede do Parlamento Europeu.
NA ÚLTIMA TARDE que passei na cidade, segui as margens do rio Ill e, no caminho para o Parlamento Europeu, passei por casas antigas espetaculares e pela sede da cadeia de televisão franco-alemã Arte. Uma acreditação temporária de imprensa permite-me ir além das áreas destinadas aos visitantes e descobrir os estúdios de televisão, os locais de trabalho reservados aos correspondentes internacionais e sentar-me na zona de imprensa na principal sala de reuniões. Olhando para baixo, para a zona de debate, reconheço alguns dos membros deste parlamento da União que trouxe à Europa uns inéditos mais de setenta anos consecutivos de paz. À esquerda do presidente sentam-se os socialistas e os verdes, depois os liberais, os democratas-cristãos e os conservadores à direita. À direita de todos estão os nacionalistas e os «eurocéticos», cheios de vontade de recuar no tempo e regressar a fronteiras e barreiras, ao invés de melhorar o que temos e pode ser melhorado na Europa. A história desta belíssima cidade devia servir-lhes de aviso. E a nós também.