NUMA NOITE DE QUARTA-FEIRA do passado mês de setembro, Michelle Grainger e o marido, Steve Le Goff, contemplavam a chuva que caía sobre a sua casa de dois andares, ao estilo vitoriano, integrada num conjunto de edifícios históricos da pequena cidade de Salina, no Colorado, a alguns quilómetros de Boulder. Perguntavam-se em voz alta quando é que o pior daquela tempestade iria passar. Havia três dias que chovia sem cessar, e o Gold Run Creek, que normalmente era um regato pachorrento a cerca de 15 metros da sua propriedade, tinha-se transformado numa torrente enfurecida.
Creio que [a águ a ] va i chegar à gar a g e m » , disse Steve, de 51 anos. Ainda assim, o casal acreditava que estava bem preparado para a cheia. Desde o enorme incêndio de Four Mile Canyon, em 2010, em que desapareceu a maior parte das árvores e muita da vegetação das colinas à volta de Salina, que as autoridades alertavam para o risco de cheias rápidas de consequências potencialmente catastróficas.
Steve e Michelle, de 52 anos, tinham ouvido os avisos e empilhado cerca de dois mil sacos de areia à volta do seu terreno. Haviam colocado uma corda de segurança ao longo do caminho que serpenteava pela colina íngreme nas traseiras da sua casa, para o caso de terem de sair de casa durante a noite. As mochilas estavam cheias de mantimentos. Só tinham de meter os arneses nos dois leões da Rodésia, Lucy e Kayla, e de guardar as duas gatas, Izzie e Sophie, nas caixas transportadoras, e estariam prontos para abalar para terrenos mais altos.
Quarta-feira à noite, as autoridades aconselharam os habitantes a sair. Algumas secções da única estrada que permitia entrar e sair do estreito desfiladeiro já estavam submersas. Se os residentes da zona quisessem sair de carro, aquela era a sua última hipótese.
Mas Steve e Michelle declinaram. Já tinham ultrapassado outras cheias e esperavam ultrapassar também esta tempestade. Uma coisa é ter tudo preparado para partir e outra, bem diferente, é abandonar tudo o que se tem.
No entanto, preocupavam-se com os vizinhos. Do outro lado da rua, Russell Brockway, um velhinho de 87 anos com um pacemaker, ia manter-se, de pedra e cal, no seu abrigo de quase 28 metros quadrados. Kay Cook e Doug Burger, professores de inglês reformados na casa dos 70 anos, que viviam mesmo ao cimo da estrada, iam fazer o mesmo.
Eric Stevens, de 48 anos, e Michelle Wieber, de 50, juntamente com os filhos adolescentes Colton e Caleb, viviam na porta ao lado. Tinham passado anos a recuperar a sua casa de madeira datada de 1875, uma das casas originais de Salina, e não iriam abandoná-la assim tão facilmente.
O riacho continuava a encher. Ao início da tarde, as barricadas feitas por Michelle e Steve com sacos de areia estavam debaixo de água. A maré enchente arrastava toros e pedras do tamanho de frigoríficos, que entupiam bueiros e pontes. O ruído era tão forte que eles não se conseguiam fazer ouvir. Ainda saíram de casa uma vez para se dirigirem à casa de Kay e Doug, mas as águas perigosas fizeram-nos desistir.
A umas centenas de metros pela estrada acima, Brett Gibson, chefe dos bombeiros de Four Mile, estava sentado no pequeno quartel, ao telefone com o Centro de Operações de Emergência de Boulder. Durante o dia, Gibson, juntamente com outros chefes de bombeiros do condado, apercebera-se de que esta não era uma tempestade convencional. As cheias não eram uma realidade inédita nesta zona do Colorado, mas o mau tempo normalmente aliviava ao fim de umas horas. Esta tempestade estava teimosamente parada por cima deles.
Por volta das 22 horas, Gibson recebeu um telefonema do Centro de Operações de Emergência (COE). «Isto é uma verdadeira m…», disse-lhe o oficial. «Esta noite vai ser muito, muito má.»
«A maior parte das comunicações com o COE são formais», disse, mais tarde, Gibson. «Para eles usarem vernáculo, é porque tínhamos nas mãos uma situação mesmo muito complicada.»
Brett Gibson transmitiu de imediato o aviso mais premente dos bombeiros aos moradores, muitos dos quais estavam equipados com rádios: «Subam imediatamente para terrenos altos. Há uma ameaça iminente à vida e à propriedade. Todos os moradores devem abandonar o local.»
Ainda assim, Michelle e Steve ficaram. Quando se aventuraram para fora de casa na quinta-feira de manhã, a tempestade parecia ter amainado. A fúria do riacho estava mais calma. Descobriram, aliviados, que a garagem estava intacta, apesar de os bueiros e pontes que ligavam as casas à estrada principal terem sido destruídos. Não havia eletricidade, e o barulho ensurdecedor da água ainda tornava difícil a comunicação.
Steve e Michelle caminharam até à porta ao lado, onde viviam Eric e Michelle, e as famílias esboçaram um plano. Na pior das hipóteses, os seis iriam procurar abrigo na casa de hóspedes de Eric e Michelle, que ficava no bosque, cerca de sete metros acima do nível da casa principal. Nenhum dos casais acreditava que a água subisse tanto.
Contentes com o plano, Steve e Michelle voltaram para casa e lá se instalaram, com os seus cães e gatos, de quem gostavam como se fossem da família. Lá fora, a chuva caía, constante, torrencial.
No quartel dos bombeiros, durante um telefonema do COE cerca das 8h30, Gibson foi informado de que a acalmia do tempo era apenas temporária. «Todos os dados indicavam que a quinta- -feira ia ser ainda pior», contou. O Serviço Nacional de Meteorologia, que raramente se desviava das suas informações técnicas e monótonas, descreveu a chuva como «bíblica».
Brett Gibson trabalhou diligentemente para orquestrar os esforços de resgate, mas agora tinha-se revelado o pleno âmbito da situação: a cheia não se limitava a alguns riachos. Espalhava- -se por 14 condados. No condado de Boulder, o mais atingido, o xerife Joe Pelle declarou estado de calamidade e estabeleceu um centro de comando no aeroporto, onde se contabilizavam os recursos, incluindo dois helicópteros Black Hawk, várias equipas de resgate e dezenas de técnicos de busca e salvamento.
Russell Brockway, o vizinho de Michelle e Steve, passara a noite no pequeno anexo da sua casa, a cerca de 10 metros do edifício principal, no alto de uma colina. Nessa manhã, alguns elementos de uma equipa de emergência chegaram para fazer sair alguns habitantes de Salina, incluindo o velhinho.
No final da manhã de quinta-feira, a chuva começou a aumentar e o riacho Gold Run começou a transbordar. O que, momentos antes, era uma cheia considerável transformou-se no que parecia ser uma parede de água e detritos com mais de sete metros de altura, despejada através do desfiladeiro.
A onda desceu o desfiladeiro, pelo centro de Salina, arrancando enormes tanques de propano pelas fundações. Os tanques, soltos, giraram e assobiaram, enchendo o curso de água com uma névoa branca pungente. Árvores centenárias partiram-se como palitos.
Mais abaixo no desfiladeiro, Steve e Michelle e Eric, Michelle e os filhos recorreram ao seu derradeiro plano: refugiar-se na casa de hóspedes destes últimos.
As duas famílias entraram no pequeno edifício juntamente com mais uma vizinha, Gurpreet Gil, e o seu gato. Gurpreet, Michelle, Eric, os cães e os gatos, instalaram-se na sala de estar. Eric e Michelle subiram para a cama de ferro forjado pintada de branco na parte de trás da casa. Os miúdos subiram para um pequeno mezanino. O grupo tencionava sair de manhã a procurar ajuda, abordando o trilho longo e íngreme que levava ao topo.
Steve e Michelle embrulharam-se confortavelmente em cobertores no chão, com os animais ao pé. Michelle adormeceu com as botas de montanha e o casaco, para o caso de ser preciso sair à pressa. Demasiado nervosa para dormir, Gurpreet ficou à porta, entre a cozinha e a sala de estar, de olho no estado do tempo.
Por volta da meia-noite, Steve ouviu «três enormes estrondos» e acordou de um salto. Um gigantesco deslizamento de terras tinha esmagado a parede das traseiras da casa e jorrava agora para o quarto onde Eric e a mulher dormiam. Steve ouviu gritar, mas sem luz, no meio daquela tempestade feita também de ruídos, não percebeu de onde vinham os gritos.
A lama e a água despedaçaram uma parede interior. A corrente apanhou Steve e arrastou-o para a parte da frente da casa. Quando se aproximou da parede, cravou as mãos e os pés de cada lado da ombreira da porta da entrada e firmou-se, enquanto lama, água, pedras e madeira se empilhavam debaixo dele.
O deslizamento varreu Michelle e Gurpreet, bem como os animais, para o outro lado da sala de estar. Os destroços empilharam-se a um canto, antes de conseguirem destruir a parede da frente da casa e sair.
Os animais tinham desaparecido, enterrados, presumiu, já que havia quase dois metros de lama dentro de casa. Os rapazes tinham descido metade das escadas do mezanino e gritavam pelos pais.
A água e a lama continuavam a fluir para dentro de casa, e Steve apercebeu- -se de que não havia mais sítio nenhum para onde ir. Pontapeou a porta de entrada com força, até a conseguir abrir, dando assim algum espaço mais para aquela corrente sair.
Apesar do caos, sentiu uma calma imensa, a par de uma incrível força física. Livre e aparentemente ileso, começou a escavar com as mãos os destroços que tinham prendido a sua mulher debaixo dele. Ela estava enterrada até ao peito. «Não quero morrer assim!», gritou Michelle.
«Não é assim que vais morrer!», gritou- lhe Steve em resposta. Mas a lama e os destroços podiam bem ser comparados a cimento fresco em volta de pedras enormes.
Afundou as mãos naquela pasta e tentou afastar os detritos. Perdeu a noção do tempo. Por fim, Steve conseguiu uma alavanca para retirar as pedras que esmagavam a sua mulher, libertando- -lhe a parte superior do tronco. Nessa altura, reparou numa pata de um cão que se destacava numa pilha de lama. Cavou na terra e desenterrou Kayla. Entregando o cão a Michelle, Steve continuou a escavar em volta da mulher, que retirava terra da boca de Kayla. Num impulso, encostou a boca à de Kayla e forçou a entrada de ar nos pulmões do animal. Uma vez. Outra vez. Os olhos do cão piscaram e abriram-se. «Ela está viva!», exclamou.
«Boa! Ajuda-me a escavar», disse Steve frenético. Michelle pousou a cadela e começou a raspar a lama que lhe envolvia as pernas. Quando se viu finalmente livre, procurou por Kayla, mas o animal tinha desaparecido.
No quarto, Eric estava enterrado até ao pescoço e enredado nos lençóis. A água lamacenta corria sobre ele. A sua mulher segurava-lhe a cabeça para impedir que ele se afogasse e ao mesmo tempo gritava pelos outros.
Gurpreet agarrara em vários utensílios de cozinha para escavar e passou-os a Steve e a Michelle. Muitos desses utensílios partiram-se simplesmente. Entretanto, as pilhas de destroços haviam deixado não mais que uns centímetros livres. Temendo que a estrutura da casa pudesse colapsar, Michelle Grainger agarrou em Colton e em Caleb para a porta ao lado, para a casa de Gurpreet, partindo uma janela para conseguir entrar. Gurpreet, por seu turno conseguiu ligar para o número de emergência a partir do seu telemóvel. A operadora de serviço disse-lhe que não podiam enviar ninguém para os ajudar antes do nascer do dia.
No posto de comando de Gold Hill, Brett Gibson soube do deslizamento de terras, mas não pôde fazer nada. «Foi uma das piores noites da minha vida», lembra. «Aqueles eram os meus amigos. No entanto, teria sido suicídio mandar lá uma equipa de resgate naquelas condições. »
Michelle correu pelo trilho atrás de casa e alcançou outra casa onde alguns outros vizinhos tinham procurado abrigo. Enquanto corria, vindo do nada, apareceu Kayla e, depois, de surpresa, Lucy, coberta de lama, mas viva e bem viva.
Michelle contou aos vizinhos a situação dramática em que se encontravam. Um homem seguiu-a de volta à casa, para ajudar a retirar Eric da lama. Depois de três horas de trabalho, conseguiram libertá-lo. Mais tarde, Michelle veio a saber que tinha duas costelas partidas e uma ferida de compressão nas costas.
Entre quarta e quinta-feira caíram na região de Salina mais de 22 centímetros cúbicos de chuva, o que era o dobro do anterior recorde. Ao todo, as cheias e os deslizamentos de terra fizeram milhares de milhões de dólares de prejuízos e reclamaram a vida a oito pessoas – incrivelmente, ninguém morreu em Salina. Na sexta-feira de manhã, a tempestade tinha finalmente amainado e as ações de socorro começaram a todo o vapor, envolvendo inclusive os seis helicópteros, que trabalharam ininterruptamente durante quatro dias.
Mais tarde, nessa mesma sexta-feira, abalados e doridos, Steve e Michelle regressaram à sua casa, que sobrevivera ao pior. Lama e lodo cobriam a garagem, mas os preparativos haviam resultado. Quando inspecionaram o pequeno imóvel onde quase tinham perdido a vida na noite anterior, encontraram Sophie, com uma pata partida, sob uma pilha de mobiliário de jardim. Só faltava Izzie.
No dia seguinte, os sobreviventes deveriam ser levados de Salina para Boulder. Antes de partir, Michelle e Steve fizeram uma última tentativa para encontrar a gata. Quando vagueavam pelo bosque das traseiras da casa, Michelle ouviu um barulho. Chamando por Izzie, o som, semelhante a um miado, aumentava de intensidade. Por fim, a gata veio pelos arbustos até aos braços da dona.
Horas depois, o casal subiu a uma clareira onde um Black Hawk do exército aguardava. Os helicópteros não levavam animais, mas naquele dia a tripulação abrira uma exceção. Com Michelle, Steve, os cães e os gatos a bordo, o Black Hawk subiu e revelou o primeiro rasgo de céu azul em mais de uma semana. O helicóptero sobrevoou os ribeiros devastados, transportando os sobreviventes para Boulder, onde, por fim, a sua longa recuperação poderia começar.