Ex-vocalista dos Silence 4
FINAL DA TARDE do dia 19 de setembro de 2010. Sentada numa esplanada, na companhia do marido e da irmã, Sofia Lisboa desfruta do que resta de um magnífico domingo de
final de verão na capital portuguesa.
A conversa é interrompida pelo toque do telemóvel. Sofia atende. Do outro lado da linha estava a médica que a acompanhava nesta nova fase da vida: estava grávida de 14 semanas. A frase da médica deixou-a como que anestesiada.
«Sofia, há qualquer coisa esquisita nas suas análises.» Quase sem pensar Sofia dispara: «Esquisita como?» «Esquisita. Foi detetado um número anormal de glóbulos brancos, que indicam um quadro leucémico», respondeu a médica.
E o mundo da ex-vocalista dos Silence 4 ficou voltado de cabeça para baixo.
Filha de um casal de emigrantes, nasceu em França em 1977, vivendo toda a sua infância em Champigny-sur-Marne, perto de Paris. Desde cedo que demonstrou talento para a música, talvez herdado da mãe, que cantava fado. À semelhança da maioria dos emigrantes, o mês de agosto era passado em Portugal. No caso dela, em Leiria, junto da família, dividindo os dias entre as brincadeiras no jardim da casa que os pais haviam construído e a praia. Quando a família regressou definitivamente, em 1988, Sofia depressa se adaptou à nova vida e deu asas ao seu talento para música.
Estava a acabar o ensino secundário quando David Fonseca, mentor dos Silence 4, a descobriu numa esplanada de Leiria, a cantar com um grupo de amigos. O convite para integrar a banda foi aceite de imediato, e Sofia depressa se transformou numa das vozes mais conhecidas da música portuguesa. Fez parte da banda até 2001, dedicando-se depois a uma empresa da família como instrutora de fitness. Até àquele dia de setembro de 2010.
DEPOIS DAQUELA TARDE de domingo, o pior ainda estava para vir. Ansiosa por saber toda a verdade, Sofia passou a segunda-feira seguinte no Hospital de Leiria, à procura de uma resposta que tardava. Enviada para o Hospital dos Covões, em Coimbra, foi finalmente confrontada com a dureza do diagnóstico: leucemia linfoblástica aguda, associada a uma mutação de um cromossoma, situação que os médicos classificam como Filadélfia positivo, o que torna a doença ainda mais grave. Mas as más notícias não se ficavam por ali: a situação era de tal forma grave que Sofia teve de começar de imediato os tratamentos, e a gravidez tão desejada teve de ser interrompida, por não ser viável. Em apenas três dias, Sofia Lisboa viu o seu mundo desmoronar. E nos quatro anos que se seguiram perdeu quase tudo.
A saúde, um filho, o emprego, o marido, a beleza. E até a esperança, que a levou a pensar em pôr termo à vida. Mas houve o amor da mãe, do pai, dos amigos, o apoio das equipas médicas, e o amor incondicional da irmã, que, literalmente, lhe devolveu a vida.
Um calvário que Sofia passou para o papel e transformou numa lição de vida. Nunca Desistas de Viver é o livro, escrito em coautoria com a sua prima Natália Heleno Pereira, em que conta a história do que sofreu e passou, mas, acima de tudo, a história de um milagre e um exemplo de superação.
Para quem sempre viveu da voz, escrever um livro sobre a sua experiência tornou-se imperativo: «Não tinha o hábito de escrever; sou mais aquela pessoa que fala, que desabafa tudo, portanto já não tinha mais nada para escrever. Além disso, tudo o que vivi antes, a parte da música, já era público, toda a gente conhecia, de modo que a ideia de escrever nunca borbulhou em mim. Porém, quando me aconteceu tudo isto, ao receber o diagnóstico da leucemia, foi das primeiras coisas em que pensei – vou escrever um livro sobre isto!»
Escrever diariamente sobre tudo o que lhe estava a acontecer, foi uma forma de desabafar, mas também de proteger a família, de parecer forte, de não deixar transparecer o sofrimento. «Apesar de eu ser uma pessoa que desabafava, que falava de tudo, naquela altura eu evitava falar para proteger a minha família. Se o fizesse estávamos a somar sofrimentos, o meu e o deles. A parte do meu sofrimento, eu guardava-a para mim. Queria que eles sentissem que eu não estava assim tão mal.
Quanto estamos nesta situação, tentamos mascarar a nossa dor, para não acrescentar sofrimento à nossa família – porque eles se sentem impotentes ao ver um ente querido a sofrer», confessa Sofia Lisboa.
E O LIVRO COMEÇA exatamente com esse momento doloroso e dramático em que é confrontada com a descoberta da doença e, acima de tudo, com o facto de ter sido forçada a interromper a gravidez: «Eu não tive escolha, o que me permite ainda assim, aliviar o meu sentimento de culpa, porque neste caso o bebé já estava condenado pela leucemia. Eu não preferi a minha vida em detrimento da vida do meu bebé. Mas tinha sido uma gravidez tão desejada, tão tentada, e finalmente conseguida, que foi horrível ter passado por isso. Acho que é a única coisa que nunca vou conseguir superar, acho que não se faz o luto. Muita gente poderá dizer que nem era uma criança, que era apenas um feto, mas aos três meses de gravidez já é um ser, já se vê um nariz, uma mão, um pezinho, uma mãozinha, há quase um rosto. Não tive oportunidade de ser mãe, mas já o amava mais do que a mim própria. Vou ter de aceitar, mas nunca vou conseguir fazer o luto.»
Devido à violência dos tratamentos, Sofia Lisboa ficou com várias sequelas permanentes. Uma delas, é ter perdido a capacidade de voltar a engravidar. Aos 38 anos, entrou numa menopausa precoce, e sofre de necrose no colo do fémur. Algumas dores e incapacidades ficarão para sempre. Outras, está a lutar para as ultrapassar. As dores físicas, resultantes da agressividade da doença, foram muitas, mas Sofia Lisboa não hesita em afirmar que perante as dores emocionais, essas acabaram por ser menores: «Essas dores ficam relativizadas. O sofrimento físico que tive é impossível de descrever. Costumava compará-lo com tortura – ficamos com vontade de confessar os crimes todos do mundo para ver se aquilo acaba. A dor física é desesperante, mas dão-nos um medicamento e ela atenua-se. Já a dor emocional, aquela perda, não há medicamento que nos alivie...», admite Sofia Lisboa.
Envolta num turbilhão de emoções e de dor física extenuante, a ex-vocalista dos Silence 4 conseguiu, ainda assim, manter a fé numa recuperação total, que a fizesse voltar à vida que tinha. Uma esperança que em muito se deve ao apoio familiar e ao otimismo que sempre teve: «Foi tudo muito rápido. Terminei a gravidez e no dia seguinte já estava a fazer tratamentos. Como sempre fui muito positiva, não sei se por otimismo se por utopia, desde o primeiro momento achei que ia vencer a leucemia. Não sei porquê, e no entanto só tinha 1% de hipóteses de sobreviver. Quando me disseram que só tinha 1%, eu disse: “Uau, que bom!” Porque, vejamos, 1% de toda a humanidade é muito. E porque é que eu não haveria de fazer parte desse 1%? Eu não tinha dúvidas de que ia vencer, mas aquilo que mais me custava era esperar. Não me apetecia esperar. Sabia que a luta iria ser muito longa. Quando entrei em depressão, isso é que me custou.»
Uma espera que significava acima de tudo, ficar parada. E para alguém que tinha uma vida agitada, sempre preenchida, era algo impensável. Quando a doença lhe bateu à porta, Sofia era instrutora de fitness e acabava de entrar na Faculdade de Gestão com a média de 19 valores. Havia ainda os planos familiares – tinha a vida toda à sua frente. Mas de repente essa vida ficou confinada às paredes do Instituto Português de Oncologia de Lisboa (IPO).
Veio a revolta. As tradicionais perguntas: Porquê eu? Como é que me foi acontecer? O que fiz para merecer isto? É aqui que os apoios de quem está próximo – família, amigos, profissionais de saúde – são importantes.
«Passei por todas as fases. Primeiro queremos culpar alguém, porque se ninguém é culpado, então temos de olhar para nós. Se é verdade que há cancros que surgem devido a comportamentos de risco, há outros que são totalmente democráticos, como é o caso da leucemia, que atinge qualquer pessoa. Aqui o único verdadeiro culpado é a doença, ela é que é o bicho papão», garante Sofia Lisboa.
EMBORA A REVOLTA seja uma das etapas mais difíceis de ultrapassar neste processo, Sofia aconselha todos os doentes a deixá-la para trás o mais depressa que possam. Ela não pode estar sempre presente: «A revolta é contraproducente e atrasa o processo de cura. A negação e a revolta fazem perder um tempo precioso. A revolta tem de se arrumar. Temos de chorar, de gritar... Claro que temos direito aos momentos de revolta, mas não nos podemos centrar nela, nem gastar energia em valorizá-la demasiado. É contraproducente, temos de usar a nossa energia para a parte proativa. A medicina tem um papel fundamental, os amigos e os familiares também, mas o doente também tem de ajudar, arrumando a revolta ou lidando com ela mais tarde, até porque temos imensas ajudas dos psiquiatras e psicólogos do IPO. O doente tem de focar-se na cura.»
Essa é uma das mensagens que tenta passar nas muitas apresentações do livro e nas palestras e apresentações que tem feito por todo o país, nomeadamente nas escolas secundárias. Fala da sua experiência sem tabus ou moralismos, e tenta ajudar os mais novos a ganharem consciência de si próprios e a adotarem comportamentos mais saudáveis: «O que eu digo aos miúdos é que eles podem ter tudo, podem ter o melhor dos dois mundos: divertirem-se, saírem com os amigos, gozarem a vida, mas, ao mesmo tempo, tratarem o corpo como um templo. Porque pelo menos vamos tentar não ter cancro», explica às Selecções do Reader’s Digest e à Rádio Sim.
No seu livro, Sofia Lisboa não esquece as pessoas com quem se cruzou no IPO ao longo do tratamento. Muitos não resistiram. E teve de lidar de muito perto com a morte. Como a do Manelinho. Um menino angolano que teimou em fazer amizade com ela. A sofrer com a perda do seu bebé, Sofia fugia do Manelinho, tinha medo de se afeiçoar e de voltar a sofrer. Mas o menino derrubou-lhe as barreiras e acompanhou-a em muitos dos seus dias no IPO. Até ao dia em que partiu. A realidade é de tal forma dura e fatal nestes casos, que os doentes internados no IPO são aconselhados a não fazerem amizades uns com os outros.
AO LONGO DOS QUATRO ANOS que passou no IPO, Sofia afirma que se sentiu sempre apoiada pelas equipas médicas, que tudo fazem para salvar vidas. Mas no livro também refere pessoas que não deviam trabalhar lá: «Eu tenho a certeza de que 99% das pessoas que trabalham no IPO – auxiliares, enfermeiros, médicos – são fabulosos, são seres humanos especiais. Mas é claro que há de tudo em todo o lado, e há sempre uma ovelha negra. Eu também não devo ter sido fácil, principalmente nos dias piores, em que estive mais em baixo, e terei descarregado na pessoa mais próxima ou que calhou passar por ali. Claro que não quis deixar de falar da outra parte, das pessoas que talvez não estejam na profissão certa e que algumas vezes nos fazem perder a humanidade, que é aquilo que nos resta numa cama de hospital. Devem lembrar-se de que, por pior que estejamos, somos seres humanos.»
Em jeito de ilustração desse lado menos bom, Sofia Lisboa recorda o médico que, secamente, lhe disse para se reformar. Perguntou-lhe se já tinha metido os papéis. «Olhe que a mama está acabar.» Foi como se lhe tivessem dado uma bofetada. E, veja-se a ironia, está reformada por invalidez e, no entanto, o que mais quer é voltar a trabalhar.
Ao longo das 205 páginas de Nunca Desistas de Viver, Sofia Lisboa relata, de forma crua, a sua batalha contra a doença. Uma batalha dura, sofrida, que a levou a ponderar acabar com a vida, terminar com o sofrimento: «Quando eu já estava mesmo muito mal, no meu limite de suportar a dor física, pensei que a única solução seria a morte, porque deixaria de sofrer. A minha família iria sofrer durante uns tempos, mas depois recuperaria. A certa altura é assustador, porque de repente a morte é uma luz ao fundo do túnel. Eu pensei muito nisso, e tive a coragem de pedir à minha irmã que me desse autorização para o fazer, porque aquilo mexia muito comigo, era como uma traição para com ela», revela emocionada.
A traição a que Sofia Lisboa se refere tem a ver com o facto de ter sido a sua única irmã a dadora da medula óssea que a salvou. Apenas 25% dos irmãos em todo mundo são 100% compatíveis. A ela, como costuma dizer, saiu-lhe o euromilhões: a irmã era 100% compatível, e tinha os marcadores compatíveis, 10 em 10.
APÓS O TRANSPLANTE, quando tudo parecia bem encaminhado, recuperação de Sofia sofreu novo revés: contraiu a doença do enxerto contra hospedeiro. O seu sistema imunitário entrou em conflito com o da irmã.
Ganhou 27 quilos, ficou com o corpo coberto de pelos. Completamente irreconhecível. E foi nessa altura que pensou na morte, programando-a ao pormenor. A irmã conseguiu demovê-la. «Chorámos imenso as duas, e ela não deixou. Fez-me entender que, ao tirar a minha vida, eu ia tirar um bocadinho da vida dela, da vida da minha mãe, da vida do meu pai, dos meus amigos. E eu senti que, se naquele momento a minha vida não tinha valor para mim, tinha muito valor para muita outra gente. E se eu tivesse tomado essa decisão na altura, teria perdido todas as alegrias que eu já vivi depois de ter a doença, e não chegaria a conhecer gente maravilhosa, que me ajuda todos os dias, e outros a quem eu ajudo também, através da minha página do Facebook, onde me pedem uma palavra de amizade ou de conforto. Eu estaria a perder a missão que me foi confiada, de passar uma mensagem de esperança, de não desistir. Se eu tivesse desistido, não teria tido a oportunidade de ter uma segunda vida, melhor que a primeira.»
Quem passa por uma experiência como esta, de um sofrimento atroz, de luta pela vida até ao limite, sofre transformações que, mais do que físicas, são emocionais. Não se fica igual. Com Sofia também foi assim. Diz que ficou uma pessoa melhor.
«Não tenho a menor dúvida. Sempre fui muito egocêntrica, muito eu, eu, eu. Ainda sou muito mimada. Mas ganhei alma, estou muito mais consciente das necessidades dos que me rodeiam. Fiquei mais virada para os outros. Estou mais disponível emocionalmente. Ganhei isso.»
E POR ISSO, Sofia voltou a reunir os Silence 4, no ano passado, angariando 30 000 euros para a Liga Portuguesa Contra o Cancro (LPCC). Também um euro de cada exemplar da primeira edição do livro Nunca Desistas de Viver foi doado à Operação Nariz Vermelho. Sofia tem o projeto de levar a sua mensagem de esperança mais longe. Divulgá-la junto da comunidade portuguesa espalhada pela Europa, e, quem sabe, traduzir o livro para outros idiomas, para chegar a mais lugares do mundo.
As Conversas na Praça são uma parceria Selecções Reader´s Digest e Rádio SIM. Pode ouvir esta entrevista em
http://radiosim.sapo.pt/Detalhe.aspx?did=39739&fid=1317&FolderID=1317