O QUE LEVA um treinador de futebol a agarrar numa bicicleta e a pedalar pelos locais mais recônditos da América Latina ao longo de milhares de quilómetros, munido apenas de uma mochila, um saco de bolas, um computador, uma câmara e duas mudas de roupa?
Resposta: o gosto pelas viagens e pelo voluntariado.
Desde janeiro que Daniel Gonçalves, de 34 anos e treinador de futebol, está a viver a maior aventura da sua vida: percorre alguns países à procura de clubes, equipas e instituições, para oferecer o seu conceito de futebol, o Global Soccer Concept, um projeto que começou a ser desenhado há ano e meio.
«Decidi vir para a América do Sul e, “de bolas às costas”, montar-me na minha bicicleta à procura das equipas escondidas pela América Latina, desde os grandes estádios, aos campos de bairro das aldeias mais remotas, passando por pequenos clubes, e até por instituições e orfanatos. Neste percurso, tenho o objetivo de levar uma bola e o meu conceito de futebol a todo e qualquer lugar onde haja paixão pelo futebol, para mostrar que o futebol pode ser um caminho para a vida!», explica Daniel Gonçalves às Selecções do Reader’s Digest , durante a sua estada na Costa Rica.
Natural da freguesia algarvia de Ferreiras, em Albufeira, Daniel Gonçalves é dono de um percurso profissional bastante preenchido, onde o voluntariado tem estado sempre presente e onde o futebol está no centro de uma mundividência e de um propósito de intervenção social. Daniel sabe que «o futebol é um fenómeno que desperta paixões e que, como todas as paixões, revela o que de melhor e pior existe em cada um de nós», mas acredita que «é um fenómeno único na forma como atravessa raças e povos, religiões e sociedades». E faz-se a si próprio a pergunta: «Numa época como a que vivemos, marcada por tensões sociais e religiosas, por conflitos políticos e militares, será possível utilizar o fu tebol como algo que traz ao de cima o que nos une e o que nos motiva a sermos melhores?» Para Daniel, a resposta é uma só: «Sim! No meu percurso no futebol, já passei por quatro continentes, e estive em contacto com realidades tão díspares como o futebol profissional europeu ou a jogar descalço nos campos pelados de Timor. Aprendi a ver as semelhanças onde à primeira vista só se encontram as diferenças. Por tudo isto, acredito que este possa ser o meu contributo para um mundo melhor e tenho a certeza de que sairei desta viagem com um conhecimento e uma experiência que nenhum curso me traria... É também um investimento no futuro!»
É por tudo isto que, desde janeiro, Daniel e Maria, a namorada espanhola que o acompanha nesta aventura, já percorreram mais de 4000 quilómetros a pedalar, apesar de alguns sobressaltos pelo meio, como uma noite a soro num hospital na Guatemala e cinco dias de repouso forçado para recuperar da ingestão de comida estragada na sequência de seis horas a andar debaixo de chuva intensa. Azares que obrigaram a reprogramar a viagem, que vai sofrer uma paragem de algumas semanas: Daniel vai regressar a Lisboa para terminar uma formação no âmbito da UEFA, e para preparar a segunda parte do seu projeto.
«No México, estivemos na Riviera Maya e em Chiapas, depois seguimos para o Belize, Guatemala, San Salvador, Honduras, Nicarágua e Costa Rica. O primeiro objetivo era chegar à Colômbia, onde pensava parar para terminar as práticas do meu curso UEFA e, ao mesmo tempo, refletir sobre o projeto e realizar os devidos ajustes e preparar o seu reinício em direção à Argentina», explicou às Selecções .
AO LONGO DESTES SEIS MESES, muitos foram os clubes e locais onde Daniel pôde ajudar a melhorar o dia-a-dia de muitos praticantes de futebol: «No México comecei com observação, análise e feedback de uma semana de treinos, e respetivo jogo de uma filial de um clube de primeira divisão do México, o Club León F.C., na ilha de Cozumel, em Playa del Carmen. Fiz o mesmo durante uma semana de treinos de um clube da lagoa de Bacalar. No Belize, realizei uma semana de treinos a várias equipas da Associação de Futebol Orange Walk Town, cinco dias na pequena comunidade de Hattieville e outros cinco dias na cidade de San Ignacio. Na Guatemala, pediram-me para fazer uma palestra sobre treino e competição de uma equipa profissional na comunidade de El Remate, perto das ruínas maias de Tikal. Em Poptún, estive uma semana a treinar as diferentes turmas de uma escola pública com cerca de 300 alunos de ambos os sexos.»
Mas Daniel teve também oportunidade de ajudar um atleta em particular, e de trabalhar com uma ONG ligada ao futebol: «Fiz coaching de duas semanas a um jogador da primeira divisão da Guatemala, do clube Cobán Imperial, o Victor Guay. No final criámos um pequeno vídeo sobre as suas capacidades, que foi enviado para diversos clubes portugueses. Em El Salvador, conversei com vários treinadores de Zacatecoluca sobre metodologias de treino, e aí comecei a ideia de criar uma comunidade fechada de partilha de conhecimentos. Na Nicarágua, em Granada, contactei com a ONG Fútbol Sin Fronteras, e por dois dias treinei um grupo de treinadores e monitores, lançando os fundamentos essenciais para um treino de recreação baseado num planeamento anual.»
MAS SE NA MAIORIA DOS LOCAIS que visitou foi bem recebido, outros houve em que Daniel foi olhado com alguma desconfiança. Afinal de contas, quando a esmola é grande o pobre desconfia: «As pessoas que contactei foram sempre recetivas, mas nem sempre deram importância ao projeto, como se fosse difícil de acreditar que alguém com a minha experiência, a viajar de bicicleta, pudesse chegar sem aviso e oferecer a sua ajuda.» E talvez por isso nem sempre foi fácil estabelecer contactos e quebrar barreiras para poder explicar ao que ia. «O mais complicado foi contactar clubes, federações e não receber feedback. Esperar que alguém no teu caminho te indique os “caminhos” para o desenvolvimento do projeto. Mas após alguma reflexão percebi que ninguém me pediu ajuda, por isso não posso esperar que a receção seja sempre positiva. Contudo, em Belize, através de um bom contacto dos Estados Unidos, consegui muitos momentos de intervenção, tantos que sigo em constante contacto com essas pessoas. No futuro o projeto terá de melhorar a sua comunicação e, em vez de uma viagem tão longa à procura de um espaço para intervir, possivelmente será melhor pensar em algo mais curto mas concreto, com a certeza de vir a ter esse espaço!»
MAS, AFINAL, que novo conceito de futebol é este que Daniel Gonçalves pretende ensinar em várias partes do mundo, o Global Soccer Concept?
«É um conceito de futebol passível de ser aplicado em locais com poucos meios técnicos, sendo também uma forma de intervir socialmente junto de comunidades a quem por vezes falta, acima de tudo, a capacidade de sonhar. Acredito que um jogador ou equipa com pouco conhecimento tático tem o direito de sonhar que pode um dia alcançar uma equipa profissional. Na realidade, a meta é conseguir transmitir as ferramentas necessárias para que, quando exista uma oportunidade, possam estar preparados para lutar pela vitória de igual para igual. Para isso, é importante transmitir a noção de perigo, de segurança, de espaço (profundidade e largura), assim como a responsabilidade tática de cada jogador e da equipa como um todo. É também importante preparar os técnicos para orientarem as equipas para a maximização do seu potencial, e permitir o surgimento de novos talentos», revela Daniel Gonçalves.
Na bagagem de regresso, além das fotos, Daniel traz muitas histórias para partilhar e uma aprendizagem única. Apesar dos problemas que enfrentou, as boas experiências pesam mais na balança desta aventura. E alguns momentos, segundo ele, foram mágicos: «Treinar as várias turmas da escola de Poptún, na Guatemala, foi o que mais me tocou. Foram vários dias de improvisação e aprendizagem. Com quatro bolas pode-se fazer muito, desde que haja paixão pelo que estamos a fazer.»
Uma aventura desta envergadura tem, naturalmente, os seus custos, que não são pequenos. Daniel previu gastar dez euros por dia, para além da viagem aérea e dos custos dos materiais. Mas o projeto financia-se a si próprio.
«Quando decidi fazer esta viagem sabia que tinha custos e que teria de estar preparado para tudo. Preparei-me durante algum tempo e, além dos amigos e familiares que me apoiaram, quis construir este projeto com uma estrutura sustentável. Ainda não o é, mas acredito que futuramente a paixão que faz girar o mundo do futebol também fará girar o mundo do Global Soccer Concept. Para já, vou trabalhando e divulgando o conceito. Há já várias centenas de seguidores, que contribuem com pequenos donativos, por intermédio da compra de produtos GSC, e tornam esta aventura possível.»
DANIEL ESTÁ DE REGRESSO a Portugal, mas é por pouco tempo. Apenas o suficiente para recarregar as baterias e repensar as coisas: «Vou angariar fundos para levar o projeto a África e, durante um ou mais meses, desenvolver no mesmo local o Global Soccer Concept, numa só comunidade, em vez de visitar vários locais. Quando se encontra as pessoas certas, o apoio é total, apenas as condições são poucas. Vou aproveitar para terminar o curso UEFA A, para melhorar os pontos débeis do projeto e regressar mais forte...»