“Une place madame?” Sentado no café La Bourse et la Vie [A bolsa e a vida], de suspensórios amarelos a comprimir -lhe a barriga saliente, quem faz a pergunta olha-me através dos seus óculos redondos, indica-me por onde passar e volta-se de novo para os seus companheiros.
Está a contar uma história aos amigos, mas claramente também quer que eu a oiça. É um conto tradicional, do fabulista do século XVII Jean de La Fontaine, acerca de uma garça que se recusa a comer algo que não seja a melhor comida. O homem abre os braços, imitando a ave – e quase faz tombar um incauto conviva – e começa a chilrear como um louco. De pois para. Viu alguém que conhece a descer de carro a Rua Vivienne.
Nesta tépida tarde de junho, as portas estão escancaradas. Ele chama o amigo, que trava em frente do café. Conversam um pouco, abstraídos dos condutores que buzinam à sua volta. Finalmente acena com a mão. O amigo segue o seu caminho e o con tador de histórias retoma o seu conto.
Foi só quando vislumbrei o quadro numa parede próxima – de um homem quase nu, estilo pin-up, com óculos redondos – é que percebi que ele é Patrice Tatard, o dono do café na altura (atualmente o dono é Daniel Rose).
Outra pessoa capta a atenção de Patrice: um motociclista entra a falar ao telemóvel. Disto ele não gosta. Solta uma jorrada de epítetos do colorido ao mais profano até que o motociclista passa. Volta finalmente à sua história, piscando-me o olho quando torna a posar como uma garça. Os companheiros olham para mim, impotentes.
«Um francês típico», diz um deles, num suspiro.
HÁ POUCAS COISAS mais tipicamente francesas do que a interação artística entre voyeurismo e performance a que se assiste em qualquer café parisiense. Observar pessoas continua a ser o passatempo mais comum em Paris. No século XIX, à medida que a industrialização transformava a cidade numa das maiores metrópoles do mundo, a flânerie uma palavra que significa caminhar sem destino, mas com atenção a quem passa foi elevada a um género de arte. Flâneurs como o escritor Honoré de Balzac e o poeta Charles Baudelaire deambulavam pelas grandes avenidas novas, construídas na margem direita de Paris, onde os passeios largos e os muitos cafés eram pontos de observação perfeitos.
Eu cresci na margem esquerda do Sena e sonhava viver na Paris do século XIX, com escritores flâneur como Balzac, Baudelaire ou Émile Zola. Andei de bicicleta pelas ruas labirínticas do 9.º bairro da cidade, onde moravam as cortesãs de Zola e os degenerados de que fala Baudelaire, apaixonada pela Paris dos romances que tinha lido. Isso levou-me a fazer o doutoramento em literatura francesa do século XIX e agora, de volta a Paris, estou prestes a tornar-me numa flâneuse do século XXI.
Começo nas avenidas do 9.º bairro, onde se pavoneava a burguesia afluente. Para minha desilusão, há poucos sinais do mundo que Baudelaire e Balzac descreveram. Lojas de marcas multinacionais cintilam sob varandas de ferro forjado. Os parisienses passam pelas montras, apressados, sem tirar os olhos do telefone.
Determinada, saio da Boulevard Haussmann e dirijo-me à Galerie Vivienne, uma famosa zona de passagem, com galerias de lojas cobertas por um telhado de vidro. Poucas estruturas invocam tão fielmente o século XIX como esta. Criando um atalho quase direto entre as grandes avenidas e o refúgio dos artistas em Montmartre, as galerias eram locais onde as pessoas, tal como os produtos, se iam mostrar. Por outras palavras, o habitat natural do flâneur.
Sob o teto de vidro da Gallerie Vivienne, paro junto a um alfarrabista, pronta a praticar um pouco de flânerie . As montras da loja refletem as mesas de café mais próximas, permitindo-me observar um jovem atraente e uma loura de quarenta e poucos anos, impecavelmente vestida, sentados em mesas adjacentes, supostamente concentrados nos seus livros. Vejo o seu reflexo enquanto olham um para o outro de relance e à vez, enquanto sorriem. Estendo a mão e pego num livro qualquer, para poder também fingir que leio enquanto os espreito. Só então percebo que peguei num livro erótico, com corpos nus. Quando me volto outra vez, eles já pousaram os livros e fazem conversa de circunstância. Quando me afasto, já se estão a rir.
Vou descobrindo que cada galeria de Paris tem as suas próprias histórias, e o tempo que passo em cada uma só me permite conhecer metade. Na Passage des Panorames – imortalizada em Nana , de Zola, por ser o local onde a cortesã que deu nome ao livro se encontrava com os seus amantes – a história parece ser sobre oportunidades perdidas. Espreito uma mulher, de uma certa idade, exuberantemente vestida de chiffon azul, sentada com as costas muito direitas na esplanada de uma brasserie que tem uma fachada do século XIX. Parece estar à espera de alguém. Ninguém vem. Do outro lado da galeria, numa loja de selos raros, o proprietário idoso está sentado junto à registadora, na companhia de um bife tártaro e de um copo de vinho tinto. Tanto pode ser um viúvo recente, pouco habituado à solidão, como pode ter jantado assim durante 65 anos.
SE OS CAFÉS das avenidas e das galerias são dois dos grandes teatros urbanos da cidade-espetáculo, como se diz de Paris, o terceiro são os grandes armazéns, aquilo a que Balzac chamava «o grande poema de exibição [cantando] as suas estrofes de cor desde a Madeleine até à porta de Saint-Denis». No século XIX, estes estabelecimentos inovadores eram mais do que zonas de compras, eram locais em que se ia para ver e ser visto, pas - serelles onde se comparavam modelos de alfaiate.
Encontrei-me com o meu amigo de infância James Geist – um parisience de ascendência franco-argelina que estuda Direito – no Le Bon Marché, o mais antigo grande armazém de Paris, que inspirou o romance de comércio e sedução de Zola, O Paraíso das Damas. Embora o Printemps e as Galerias Lafayette sejam mais famosos, diz James, só no Le Bon Marché, longe das hordas de turistas, é que se encontra o que resta da Paris de antigamente.
Hoje é um dia perfeito para flanar, diz-me. Os saldos, um período de promoções determinado pelo governo, estão a decorrer. Todos os parisienses, ricos e pobres, saem para fazer compras – e ver quem mais anda às compras. «Tudo é um símbolo», diz James. «Em Nova Iorque ou em Londres, as etiquetas é que importam.» Aqui, repara, as distinções são mais subtis. As costuras na mala de mão, o padrão de uma echarpe – tudo integra um idioma visual complexo através do qual os parisienses comunicam.
Enquanto subimos de elevador para a seção de mulher, com a luz dos tetos de vidro fumado a iluminar as balaustradas de ferro, James aponta para os diferentes tipos de personagens parisienses. Há o homem que identifica como um dandy do bairro Marais: na moda, com a barba longa, fato de marinheiro e lenço turquesa ao pescoço. Perto dele, um homem de negócios quase calvo procura um fato com a mãe, uma viúva cuja expressão revela desprezo.
«Mas, mamã, este não é tão bom como o Saint Laurent!», queixa-se ele, ao passarmos. «É este e ponto final», responde a mãe, de forma brusca.
Pouco depois, James localiza o nosso alvo. Mede pouco mais de metro e meio, tem no cabelo madeixas perfeitas e a pele do rosto tão hidratada, que não se percebe a sua idade: é a suprema parisiense de outras eras. A sua discreta mala Hermés e as calças de cintura subida assinalam a sua identidade de matriarca do 7.º bairro, bastião parisiense da riqueza herdada. Percorre a loja, escolhendo e descartando lenços, blusas, sapatos, numa busca para encontrar o objeto único que irá aperfeiçoar a sua toilette . James ri-se: «Em Paris, até o ócio dá trabalho.»
NO DIA SEGUINTE, vamos de ferry até ao Café de Flore, na Boulevard St. Germain. Se as avenidas da margem direita eram o principal território dos flaneurs no século XIX, as esplanadas dos cafés da Boulevard St. Germain tornaram-se o refúgio dos frequentadores de café da «geração perdida», os que atingiram a maioridade durante a Primeira Guerra Mundial. O interior em art-déco do Flore acolheu outrora intelectuais como Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir e Albert Camus. Hoje, apesar da afluência de turistas, diz-me James, o Flore – tal como o seu vizinho e rival, Les Deux Magots – continua a ser um dos melhores locais da cidade para praticar a flânerie . Não demoramos a encontrar a nossa peça de teatro. Três cavalheiros, dos seus sessenta anos, com as barrigas a saírem dos casacos, estão sentados em torno de uma mesa a ler jornais.
São, decidimos nós, personagens perfeitas, porque exibem aquele equilibro difícil entre a excentricidade e a autoconsciência que é tão necessário nesta cidade de atores. Aos seus pés, um cocker spaniel remexe migalhas de croissants . O seu dono, um homem de barba branca, repreende o cão, Caliphe , com pancadinhas de jornal no focinho, por comer de mais, e depois anuncia que se vai embora: «Je vais lire mon roman» [Vou ler o meu romance.]
Erguendo-se com aparato, diz adeus aos seus companheiros. Dá cinco passos na avenida e depois encolhe os ombros e volta para trás, retomando o seu lugar sem dar expli - cações. O Caliphe salta para reclamar a cadeira adjacente. O homem fica mais duas horas. Os companheiros vão-se, outros chegam. Atrás de nós, um jovem com cabelo branco antes de tempo e com óculos de aros de tartaruga está atento, a escutar, tal como nós. Quando o vemos usar o telefone para tirar uma discreta fotografia, James sussurra: «Aquele é que é um verdadeiro flâneur .» Reprimimos uma gargalhada. Mas rapidamente o meu amigo se recompõe. A flânerie é mais do que uma fonte de divertimento, diz.
«É uma filosofia, um ideal. Observar as pessoas é uma forma de nós, parisienses, sairmos de dentro das nossas cabeças e lembrarmo-nos de que os outros existem.» Enquanto fala, vislumbramos a mulher patrícia do Le Bon Marché. Veste de forma idêntica ao que vestia no dia anterior, mas tem uma nova pulseira reluzente. Ela apercebe-se do olhar de James e, por um momento, penso que sorri.
UM DOS POEMAS mais famosos de Baudelaire é A Uma Passante , acerca de uma ligação momentânea com uma mulher que ele vê e depressa perde na multidão. «Não sei para onde fugiste, não sei para onde vou, oh tu que eu teria amado, oh tu que o sabias!»
No meu último dia, visito o local de repouso eterno de um dos meus ídolos, Oscar Wilde, cujos ensaios sobre artifício e teatralidade me fizeram apaixonar pela noção de cidade-espetáculo.
O seu túmulo em forma de esfinge no cemitério Père Lachaise está atrás de um vidro. Tantos admiradores o beijaram, que a sua superfície começou a estragar-se.
À medida que os turistas chegam e partem, vejo uma jovem mulher, de preto, que permanece mais atrás.
Observo como ela se senta, começa a desenhar, levantando o olhar para o túmulo. Quando me levanto para partir, ela aborda-me.
«Madame!», o seu inglês é hesitante. «Adoro o seu vestido.» Ela acena para o túmulo com a cabeça. «Tenho a certeza de que ele também o adoraria.»
Só então olho para o seu livro de esboços. Junto à sua representação do túmulo de Oscar Wilde, desenhou o meu retrato.