À MESA DE UMA PEQUENA esplanada sobre o rio Garonne, acabo de terminar um prato clássico do sul de França, com vieiras e bivalves. O restaurante parece ser um dos últimos do quarteirão a servir mais a população local do que turistas. Acompanho o meu café de uns golinhos de conhaque e espero pelo momento em que o céu brilhante chega àquele tom de azul-escuro perfeito para fotografias ao fim do dia. À medida que se aproxima, termino o meu copo e caminho 200 metros para me juntar à multidão de fotógrafos na avenida, em frente ao Place de la Bourse.
Juntamo-nos à beira do mirroir d’eau (espelho de água). É um lago pouco fundo, do tamanho de um campo de desportos, que passa por um ciclo eterno de 15 minutos a encher-se com cerca de dois centímetros de água, e depois a esvaziar-se. Ponho a minha câmara num pequeno tripé e espero.
Após alguns minutos, a água foi drenada, deixando um campo de pedras planas e molhadas que criam um reflexo perfeito do magnífico edifício setecentista que enquadra esta praça. Precisamente nesse momento, os holofotes na base das fachadas do edifício acendem-se, criando uma imagem de beleza instantânea que é recebida por uma mistura de «uaus» e «ohs» e de disparos das câmaras.
É a suprema imagem icónica da cidade de Bordéus. A coisa toda demora um minuto ou dois e depois desaparece. O céu fica negro, e os pequenos buracos entre os azulejos do espelho de água começam a soltar pequenas gotas de vapor para iniciarem mais um ciclo de enchimento.
SATISFEITO, PEGO na minha câmara e atravesso a rua para me familiarizar de novo com a Cidade Velha, que visitei pela última vez há dez anos, antes de o espelho de água ser construído. Tenho gratas memórias dos seus edifícios de calcário e da atmosfera descontraída. Embora Bordéus tenha uns 2000 anos, toda a Cidade Velha, com algumas exceções, é feita destes edifícios de calcário, fruto de uma modernização radical
da cidade por volta de 1750, levada a cabo pelo governador do rei, o marquês de Tourny, cujo nome honra uma praça e algumas lojas.
Passo por estruturas imponentes ao longo do cais e passeio pelas ruas estreitas que lhe ficam atrás, alinhadas com restaurantes, bares de vinho e lojas. Este contraste é aquilo que sempre me encantou nesta cidade, a capital da região sudoeste da Aquitânia. A arquitetura do Grand-Théâtre, os museus e a câmara municipal enfatizam o facto de «grandeur» ser uma palavra verdadeiramente francesa.
Ao mesmo tempo, tem estas ruas estreitas, que respiram um ar provincial – quase paroquial – que muitas grandes cidades europeias perderam há décadas.
Mas a cidade conhecida em França como La Belle Endormie (A Bela Adormecida) está a acordar. Encontra-se em curso um enorme projeto de restauro e desenvolvimento. Bordéus está agora a mais de metade da implementação do plano, que se prolongará até 2030.
Uma das faces mais visíveis deste gigantesco empreendimento é a marginal, ao longo da curva em crescente do rio Garonne, que serviu de inspiração para o nome do porto atlântico desta cidade, o Porto da Lua. Outrora ocupada por armazéns degradados e parques de estacionamento, o ribeirinho Cais Richelieu pode agora vangloriar-se de uma nova linha de elétrico, ciclovias e uma larga avenida. O cais é palco de um desfile diário de caminhantes, corredores, ciclistas e crianças que brincam.
Uma estação de comboios de alta velocidade recentemente aberta é rodeada por um enorme projeto de construção chamado Bordeaux-Euroatlantique, com a intenção de promover um novo crescimento económico e populacional, que acabará por catapultar a atual população de 750 mil habitantes para mais de um milhão.
O restauro da Cidade Velha, como parte deste projeto multifacetado, já levou ao reconhecimento da cidade como património da humanidade pela UNESCO. Mas irá Bordéus perder o seu charme de Velho Mundo no processo? «Essa é uma questão muito importante», diz o vice-presidente da autarquia de Bordéus, Stephan Delaux, quando o questiono na manhã seguinte.
«Temos um grupo aqui na câmara municipal que funciona como caixa de ressonância em discussões sobre como podemos manter o espírito de Bordéus», diz. Depois aponta da janela para a praça com a enorme catedral de calcário de Saint-André, que foi restaurada, e diz: «Mas já olhou bem para a esplêndida vista da minha janela? Quando Alain Juppé começou em 1995, esta praça tinha cinco faixas de trânsito, pejadas de camiões.
«Agora há um elétrico, o trânsito é desviado para um lado, e a praça é para peões. É assim que abordamos todos os aspetos deste projeto.»
Juppé é a força motriz por trás do plano para revitalizar Bordéus. O seu nome está na boca de toda a gente com quem falo. O antigo primeiro-ministro francês e presidente da câmara desde 1995 pode bem ficar na história como o príncipe que deu o beijo que acordou Aurora. E o seu nome ficará indubitavelmente ligado a uma das grandes obras, os enormes trabalhos estruturais que ficarão terminados depois da sua reforma.
NESSA TARDE encontro-me com Veronique Baggio, guia turística que me leva num passeio de duas horas paramemostraroqueénovoeoque está restaurado. Quando aqui estive da última vez, uma boa parte da Bordéus de Tourny estava coberta de fuligem. «Os donos das propriedades receberam ordem para limpar as
fachadas», explica. «Essa foi uma operação cara mas que valeu a pena. Agora podemos ver os mascarons [mascarões].»
Da última vez, eu mal tinha notado as intricadas cabeças esculpidas em calcário nas pedras angulares dos pórticos e janelas. Esta nunca foi uma cidade que nos convidasse a olhar para cima, mas ali estão eles: uns fascinantes 3000 retratos, que se encontram por toda a cidade.
«Sabe-se quem eles eram?», pergunto a Veronique. Ela responde: «Eram provavelmente personalidades locais, mas também figuras mitológicas. Alguns simbolizam produtos que se vendiam aqui.»
O vinho está, naturalmente, representado, e o trigo, mas também as pessoas. Veronique explica-me que comerciantes de Bordéus nos séculos XVIII e XIX participaram no comércio
de escravos de África para as Américas. Fala-me de uma exposição permanente dedicada ao mercado de escravos no Museu Municipal da Aquitânia.
No museu, encontro o antigo diretor François Hubert, autor do livro que acompanha a exposição. O presidente Juppé escreveu o prefácio, onde afirma que a exposição é um «passo crucial no processo de memória em que a Cidade de Bordéus embarcou». É de novo crédito de Juppé que as pazes com o passado sejam uma parte integrante dos planos para o futuro de Bordéus.
Hubert guia-me por salas cheias de modelos de barcos, pinturas e de parafernália da repressão. Estamos rodeados por um grupo de pré-adolescentes, ali trazidos para aprender aquela sombria parte da História. Mais de 11 milhões de escravos africanos foram vendidos como gado pelos britânicos, franceses, holandeses e outros. «Durante demasiado tempo escondemo-nos atrás da
noção de que a escravatura era um problema americano», diz Hubert. «Não era. Era muito europeu.»
A exposição empresta um grau de honestidade à forma como Bordéus se quer apresentar. Mas ainda há um longo caminho a percorrer. Depois de ter estado com Veronique Baggio, questionei diversos outros habitantes locais sobre o mercado de escravos, e descobri que o assunto era tão delicado ali como na minha cidade natal, Amesterdão. Não gostamos que nos lembrem os crimes dos nossos avós.
Um mito popular entre os bordalenses é que os comerciantes eram forçados por lei a mandar escravos para a América, devido a um acordo entre o rei e os americanos. É uma desculpa que atribui a responsabilidade ao regime que foi derrubado pela Revolução Francesa. Hubert ri alto quando lhe conto isto: «Não havia tal contrato. De todo.»
QUANDO DEIXO o museu, estou em cima da hora da minha reserva no Racines, um pequeno restaurante ali perto, dirigido pelo proprietário de 36 anos, o chefe escocês Daniel Gallacher. Deixou a Escócia para trabalhar e aprender com os mais famosos chefes franceses. O Racines é o seu primeiro restaurante. «Ainda não tenho uma estrela Michelin», diz-me. «Mas temos um Bib Gourmand.» Em toda a Bordéus isso é um bom augúrio para a chegada das estrelas.
«Claro que quero uma estrela», diz Gallacher depois de servir um elegante e moderno almoço. «Permitir-me-ia
trabalhar com ingredientes mais singulares. Mas, para já, é também um desafio servir menus surpreendentes com ingredientes mais comuns.»
Depois do almoço, subi a bordo do moderno elétrico da linha B, para ser levado duas paragens a norte, onde saio e alugo por 1,60 euros à hora uma bicicleta pública V3, numa estação à beira-rio. As estações V3 podem ser encontradas em praças por toda a cidade. Dirijo-me para a zona de Chartrons, um antigo bairro da classe trabalhadora que tem passado por um processo de acelerada gentrificação, na sequência do restauro do centro da cidade. Nas ruas estreitas, passo por lojas de antiguidades e de curiosidades e por pequenas casas térreas de operários, que se vendem a preços exorbitantes.
Por uma montra, o meu olho capta um relojoeiro, dobrado sobre a sua bancada de trabalho, a espreitar por uma lupa de joalheiro para um relógio de latão antigo. Pergunto-lhe se posso dar uma espreitadela. O mestre relojoeiro, Peter Peschel, ergue o olhar e sorri. «Claro», diz.
Peschel conta-me que abriu a sua loja 12 anos antes. Com tantas lojas de antiguidades em redor, está muito bem localizado. Descobrimos um amor comum pelo artesanato quando ele reconhece a clássica lente feita à mão da minha câmara. Fica agradavelmente surpreendido pela forma como se integra na tecnologia digital.
De volta à minha bicicleta, dirijo-me para a orla da Cidade Velha, para a futurista ponte elevatória vertical, com o nome do antigo autarca Jacques Chaban Delmas. Este é o antigo bairro das docas, onde Bordéus agora constrói rapidamente modernos projetos de habitação e edifícios de apartamentos de luxo.
A atração, além da ponte, é a Cidade do Vinho, o novíssimo museu internacional do vinho, num edifício com uma forma que simboliza o turbilhão do vinho no copo, embora uma mente mais sóbria possa ver ali um pato de borracha.
Bordéus, cujo nome é sinónimo de vinho, tem-se posto acima do mercado, com a sua Cité du Vine o seu festival bienal internacional do vinho.
As pessoas vêm à Cité du Vin para sessões de provas de vinhos, exposições especiais sobre a temática do vinho, e esplendidamente desenhadas apresentações multimédia sobre vinho de todo o mundo.
NO ÚLTIMO DIA da minha visita, decido ir ver uma parte mais popular da cidade, que eu recordava com carinho. Caminho para sul na comercial Rue Sainte-Catherine. Ao fim da rua, viro para o mercado informal em torno da Basílica de Saint-Michel, onde o francês normal dá lugar aos dialetos da África Ocidental e ao árabe.
Esta já não é a cidade polida e brilhante dos folhetos turísticos, mas uma típica e vívida colorida cidade do sul de França. Homens em djellabas e mulheres de salto alto partilham os passeios. Mas vejo os primeiros sinais de gentrificação. Jovens profissionais começam a deixar aqui a sua marca, como vi em Chartrons.
Mas fico contente por ver que o mercado alimentar Marché des Capucins ainda oferece a sua esplêndida mistura de ervas do Norte de África, frutos tropicais e especialidades francesas, e que comerciantes franceses, árabes e africanos ainda vendem tudo desde sapatos usados até antiguidades no mercado de Saint-Michel.
Enquanto observo duas mulheres a regatearem com um homem sobre umas roupas em segunda mão, ocorre-me que aquela cena poderá bem desaparecer de Bordéus à medida que a gentrificação se intensifica e os preços do imobiliário sobem.
Isso seria uma tremenda perda para eles e para a cidade. Terei de voltar daqui a dez anos para ver.