«PAPÁ, PODEMOS IR lá para fora?»
Ahmed Dallali abriu um olho. As filhas estão à sua frente, de olhos a brilhar, com os patins a balançar nas mãos, seguros pelos atacadores. Com 14 anos, Chayma é alta e magra, e ao mesmo tempo graciosa e desajeitada. Três anos mais nova, Siham é pequena, usa o cabelo preto num rabo de cavalo e tem um sorriso maroto.
«Por fa-vo-or!», pede Siham. «Está tanto calor!»
É dia 5 de outubro de 2014. Lá fora, nem um resquício de vento, apesar de a casa ficar no topo de uma colina, em Mare au Clerc, um bairro de trabalhadores, na cidade portuária de Le Havre, em França. No interior, o único som vem da cozinha, onde a mulher de Ahmed, Sandrine Duclos, acaba de a arrumar, após uma refeição especial. É o segundo dia da Festa de Eid, em que os muçulmanos praticantes celebram a disposição de Abraão de sacrificar o seu único filho, Isaac. No andar de cima, Bilal, o seu filho de 17 anos, está a trabalhar ao computador.
Ahmed olha para o relógio: 15h05.
«Vão. Divirtam-se!»
Ahmed, de 59 anos, fecha novamente os olhos. É a pausa perfeita numa semana dura, passada a procurar trabalho na construção. Cinco meses antes, a família mudara-se de um apartamento cheio de gente para aquela casa, por causa dos dois andares, do jardim e da localização numa pequena e tranquila rua sem saída. A renda era mais cara, mas eles gostaram da rua sossegada, das suas rosas e dos telhados de terracota. E a casa era para uma só família.
«Aqui, as crianças podem ser crianças», disseram os pais.
A rir, as miúdas saíram porta fora, para calçarem os patins sentadas no chão quente. Chayma está mais à vontade que a irmã, balançando-se um pouco antes de largar a deslizar pela rua. Silam é mais titubeante, dando pequenos passos antes de começar a patinar, mantendo os braços rígidos enquanto os mexe para se equilibrar melhor. Uma menina, vizinha de algumas portas abaixo, junta-se a elas. Chayma, a mais velha, elogia: «Siham, estás a apanhar-lhe o jeito!»
O ar estremece com as exclamações de alegria das raparigas. De repente, um grito. Siham não sabe ao certo se foi ela ou a irmã. Tudo o que sabe é que algo vem a correr na sua direção: um cão silencioso, o peito como um barril, a babar-se, uma faixa de pelo castanho nas patas curtas e grossas, as mandíbulas abertas exibindo uma fiada de dentes brancos tingidos nas pontas com algo vermelho como sangue.
De onde saiu ele?, questionou-se, confusa. E porque é que está tão furioso?
Tentou virar-se, mas o equilíbrio precário tornou tudo mais difícil. Além disso, era como se o medo a mantivesse presa ao alcatrão. A rosnar, o cão agacha-se para ganhar impulso e eleva-se num salto até à altura do peito dela, deitando-a ao chão.
«Siham!», grita a irmã. «Socorro! Sai de cima dela!»
Chayma tenta puxar o cão, mas ele é demasiado forte, mordendo-lhe o braço antes de voltar a atacar Siham. Os dentes rasgam a garganta da menina, o seu braço esquerdo e a sua coxa direita, sem descanso. Siham aperta os olhos com força, vira a cabeça para o outro lado e deixa o corpo amolecer.
FORTES PANCADAS na porta acordam Ahmed. A sesta não durara mais de 15 minutos.
«O que foi?», balbucia.
Arrasta os pés descalços até à porta e abre-a à amiga que estava a brincar com as filhas. A menina chorava.
«Monsier Dallali, são as meninas», disse, ofegante e tentando recuperar o fôlego. «Tem de vir…»
Ele já tinha largado a correr, disparado. Bilal, que, do andar de cima, ouvira a confusão, segue-o.
No passeio oposto ao da casa, Ahmed vê Siham deitada de bruços, coberta de sangue e imóvel. Supostamente, esta era uma rua sossegada, pensou. Os miúdos brincam aqui sempre e sem medo.
Chama: «Siham!»
A menina não se mexe. O pai não faz ideia do que sente: raiva, medo e desespero, tudo ao mesmo tempo. Siham é a sua menina tímida dos olhos negros, que ela costuma revirar deliciosamente. Estará morta?
Apesar de tudo parecer andar em câmara lenta, ele sabe que não há tempo e desvia os olhos do corpo de Siham. Na realidade, apenas se tinham passado uns meros segundos.
«Papá!», chama Bilal.
Ahmed vê o que mais tarde saberá tratar-se de um American Stafford-shire terrier, uma raça de pit bull sujeita a regras apertadas de propriedade em França e que foi banida de outros países europeus. Também saberá que aquele não foi o primeiro ataque do dia daquele animal: pouco antes, entrara num jardim, a poucas ruas de distância, e enterrara os dentes no braço e na perna de uma menina de nove anos.
Depois de se afastar de Siham, o cão virou-se para Chayma, a rosnar. Ela sabia que devia correr, mas estava demasiado assustada para se mexer. A casa parecia estar tão longe! Em pouco tempo, o animal estava já em cima dela e ela lutava para salvar a pele. O cão enfiou os dentes afiados no seu antebraço e ela gritou. As suas mandíbulas eram tão fortes!
Tira-o daqui!, pensou, quando se apercebeu da presença do pai.
Naquele instante, todo o mundo de Ahmed se resumiu a três personagens: Chayma, ele próprio e aquele cão a rosnar de olhos estreitos e orelhas cortadas e rentes ao crânio.
Sem pensar, atirou-se ao cão de mãos e pés descalços, aos murros e pontapés – um pai com a missão de salvar a filha, custasse o que custasse.
Não se apercebeu de que um vizinho, Jean-Luc Fouineau, se apressara porta fora, aos gritos: «Senta! Senta!» Nem viu o filho de Jean-Luc a bater na tampa metálica de um caixote do lixo, tentando fazer o maior barulho possível para assustar o animal e fazê-lo ir-se embora.
Disposto a morrer, Ahmed sentia a adrenalina a circular-lhe pelo corpo.
O cão vira-se ao seu pescoço, mas de repente lá está Bilal – o seu tão valente filho –, surgindo por trás e agarrando o cão pelo cachaço. O cão recua, morde o braço do adolescente e, talvez nervoso com tantos gritos, socos e pontapés, desaparece.
Chayma arrasta os pés e dirige-se para casa, deixando atrás de si um rasto de gotas de sangue. Chora em silêncio. Pai e filho entreolham-se, ofegantes. Tinham-se passado apenas três ou quatro minutos. Olham à volta e veem as manchas de sangue no chão, no local em que Siham tinha estado. Onde estaria?
Por favor, que esteja viva, implorou Ahmed em pensamento.
«Chayma?», gritaram os dois, enquanto corriam para a porta da frente. «Siham?»
ENQUANTO O MARIDO defrontava o cão, Sandrine, de 45 anos, saiu de casa a correr e viu Siham mexer-se e tentar levantar-se. Com cuidado para não chamar a atenção do animal, a mãe atravessou a estrada e envolveu a filha nos braços, tentando manter o rosto da menina bem junto ao seu.
«Não olhes», murmurou-lhe. «Não olhes!»
Já dentro de casa, Siham começou a tremer. Sandrine deitou-a no banco, junto à mesa da sala de jantar onde tinham celebrado o Eid ainda nem havia uma hora. Sabia que a mulher de Jean-Luc já tinha chamado uma ambulância e também a polícia. As feridas de Siham eram terríveis: o cão tinha rasgado a fáscia e os músculos do bíceps esquerdo e da anca direita, e a garganta estava marcada com dentadas profundas, semelhantes às de um tubarão.
De repente, sente-se uma corrente de ar quando Chayma cambaleia para dentro de casa e desaba em cima de uma poltrona, segurando o braço ensanguentado junto ao peito e respirando com demasiada dificuldade para conseguir falar. Os seus olhos escuros estão aterrorizados.
«A ambulância está a chegar», diz-lhe a mãe. «Calma.»
A porta bate com estrondo quando Ahmed e Bilal entram em casa. A fuga do pai transformou-se em fúria. «Quem é que pode ter um cão como este, que põe crianças em perigo?», questiona.
Os paramédicos estabilizam as meninas antes de as transportarem, juntamente com o irmão, para o hospital. Aí, Siham é anestesiada para que os médicos lhe suturem as dolorosas feridas com 27 pontos, alguns deles dados profundamente no músculo.
Também operam Chayma, suturando e estancando a hemorragia.
AGORA, OS FILHOS DE AHMED podem estar um ano mais velhos, mas é difícil de esquecer que, por causa de um cão e da irresponsabilidade do seu dono, dois deles carregarão cicatrizes para o resto da vida, tanto na carne como no espírito. Os patins cor-de-rosa estão arrumados e já não são usados. E quando se lhes pergunta sobre aqueles minutos, riem de nervoso. Porque os revivem uma e outra vez nos seus pesadelos à noite e quando se aventuram na rua, quando estão longe da segurança da sua casa.
Mas também aprenderam isto: são sobreviventes.
«Quando crescer, quero ser veterinária», afirma Siham.
Chayma, mais pragmática, pergunta: «Posso comer mais gelado?»