TIM BRADY ACORDOU ÀS 5 da manhã na sua casa em Big Thompson Canyon, 60 quilómetros a noroeste de Denver, no Colorado.
A data, 12 de setembro de 2013, é a do vigésimo primeiro aniversário de casamento dele e da sua mulher, Pam. Ela também acordou cedo e os dois congratulam-se mutuamente a brincar por se aturarem há tanto tempo. Pam é uma representante do serviço a clientes do First Nacional Bank, a mais ou menos 20 quilómetros, em Loveland.
Tim, de 51 anos, magro, com um espesso bigode castanho e tatuagens nos braços, trabalha numa equipa do serviço de ruas da cidade e é chefe adjunto do Departamento de Bombeiros Voluntários de Big Thompson Canyon.
Tim olha pela janela da cozinha. Cinco dias de nuvens e chuva intensa. «Isto é uma chatice», resmungou.
O telefone toca. É o chefe dos bombeiros. Deslize de terras. Grandes calhaus. Ninguém vai longe hoje. Tim calça as botas de borracha e pega no casaco, num rádio do departamento, e nas chaves da sua pickup, e pergunta a Pam se quer vir com ele.
A CHUVA BATE no para-brisas do carro enquanto Tim e Pam descem o trilho lamacento que leva à US 34. Há folhas arrancadas por toda a parte. Lama, pequenas pedras e pedaços de ramos espalham-se pelo asfalto lambido pela chuva. Ao longo da estrada, à direita, fica Cedar Cove, um conjunto de 12 casas e chalés. Ao fundo de uma ribanceira e através de árvores espessas, Pam consegue ver o rio Big Thompson a transformar-se. Por norma, serpenteia por Cedar Cove. Agora, outra corrente faz um gancho em torno do lugar. O rio transbordante pressiona um talude que segura a estrada.
Quanto Tim e Pam chegam ao quartel dos bombeiros, alguns quilómetros adiante, alguns voluntários já lá estão, incluindo a paramédica Jenica Butts. Tim pede a Jenica que fique de plantão para o caso de uma emergência.
Tim e Pam pegam no carro 276, uma pickup todo-o-terreno de combate a incêndios florestais, e dirigem-se para leste. Nas terras baixas, uma corrente de água invade a estrada. O rio em torrente parece um comboio de carga. Tim conduz sobre um cabo elétrico solto e desvia-se dos detritos do deslizamento de terras.
Sete quilómetros para leste, uma secção da US 34 está a ceder. Tim ata a fita cor-de-rosa a um rail e fá-la atravessar a estrada. Nunca viu o rio tão alto. Tenta imaginar a cheia do Big Thompson de 1976. Matou 144 pessoas. Quem a testemunhou diz que foi uma explosão de água – em poucas horas, 30 a 35 centímetros de chuva, e depois uma onda de maré. Nesta manhã, no entanto, Tim viu o rio como uma torrente infindável, forçando contra a estrada. Depressa levará a terra, centímetro a centímetro, como uma escavadora.
Um bombeiro voluntário bateu à porta de Joyce Kilmer em Cedar Cove por volta das 8 da manhã, dizendo-lhe que teria de se mudar para terreno mais alto. O rio está a subir e a vizinhança está em perigo.
De 76 anos, com cabelo louro curto, Joyce vive numa casa situada pelo menos 12 metros acima do rio.
Ainda assim, concordou em sair. Conduziu o seu carro para terreno ainda mais alto, perto da casa da vizinha Evelyn Starner. Evelyn tem 79 anos, é viúva, alta e magra com uma cabeleira branca. Joyce bateu-lhe à porta. Evelyn convidou-a a entrar.
WESLEY SLADEK apressou-se pela estrada no seu Chevy. Na pressa de evacuar a sua casa 800 metros a jusante de Cedar Cove, a avó tinha-se esquecido da medicação para o coração e não se apercebeu senão ao chegar a Drake, oito quilómetros a oeste de casa, onde se encontram a mãe e o irmão de Wesley. Não sabiam quanto tempo estariam fora, por isso Wesley ofereceu-se para levar a avó de volta para ir buscar os medicamentos.
Wesley, de 24 anos, acabou de se matricular na universidade do estado do Colorado para estudar engenharia. É esguio, com cabelo curto e composto.
Quando Wesley e a avó pararam junto à casa dela por volta do meio-dia, ele tinha a certeza de que não podiam voltar a Drake. A estrada parecia instável, o rio agora estava demasiado imprevisível. Encontraram a medicação para o coração, e depois dirigiram-se à pequena colina onde vivia Wesley. Ele e a sua avó abrigar-se-iam ali, pensou Wesley.
AO POR DO SOL, Joyce e Evelyn decidiram ir até à casa de Joyce e prepará-la para uma possível inundação. Depois de um casamento de 31 anos que terminou em divórcio, aquele era o sítio para onde Joyce tinha vindo para começar vida nova uma década antes. A casa ficava dentro de uma propriedade de mais de um hectare de terra, com cinco ulmeiros de 12 metros de um lado. Havia um pequeno celeiro que ela tinha transformado em estúdio de pintura.
Joyce pegou na carta de condução, num cartão de crédito, num casaco de inverno, num poncho e em algum dinheiro, e meteu no carro algum do seu trabalho artístico, um cofre com a sua certidão de nascimento e joias, a Bíblia de família do século XIX, a sua pesquisa genealógica e algumas fotografias.
Quando terminou, percorreram de carro a curta distância de regresso à casa de Evelyn.
TIM FEZ SAIR da zona pelo menos dez pessoas por volta da uma da tarde. A US 34, a três quilómetros para leste de Cedar Cove, era agora intransitável. O deslizamento de terras ainda bloqueava a estrada para oeste. É uma situação desesperada para Tim e para os residentes deixados para trás no que se tornou, basicamente, uma ilha. A central em Loveland é bombardeada com chamadas de emergência. Árvores caídas. Carros na água. Uma família presa numa cabana.
Tim convence dúzias de outras pessoas a deixarem as suas casas e a procurarem abrigo em terrenos mais elevados. Encosta o carro 276 à berma da estrada e sobe por cima de uma vedação de arame sobre a orla sul de Cedar Cove.
Um homem chamado Mike Horn está no alpendre de uma pequena casa de dois andares. Atrás de Mike estão a sua mulher, Flo, e a sua vizinha, Patty Goodwine. O rio aumentava entre a casa e a posição de Tim na estrada. Tim está em terreno alto. Acena.
«Vocês estão bem?», grita Tim sobre o rugido das águas.
«Por agora!», responde Mike.
Tim trabalhou até muito depois de escurecer e depois ele e Pam voltaram para casa. A eletricidade faltou por volta das 10 da noite. De vez em quando, ia ao alpendre traseiro. O rio desapareceu na escuridão, mas ele podia ouvi-lo.
POR VOLTA DAS 10 da noite, Joyce e Evelyn foram até ao alpendre da frente. Imediatamente ouviram árvores à distância a estalar e a cair. Joyce viu os seus enormes ulmeiros lá em baixo tombarem sobre o telhado da casa e esmagarem o seu estúdio. Ela e Evelyn viram tudo a desaparecer.
A casa de Evelyn ainda estava mais alta do que a água. Se o rio de alguma forma as atingisse, podiam subir o talude do lado sul da casa de Evelyn, e depois chegar à estrada.
POR VOLTA DAS 9 da noite, Wesley fez a pé os 150 metros até à casa do seu primo Jay Williams. Ali estavam diversas pessoas. Vizinhos, uns parentes. Wesley ajudou a reunir baterias, lanternas e velas.
Estava escuro como breu quando Wesley voltou para casa por volta da meia-noite. À sua esquerda, corria água com um palmo de profundidade, pelo relvado da frente de casa da avó. Wesley viu como estava a avó e depois meteu-se na cama.
ALGURES POR VOLTA DAS DUAS da manhã, ouviu-se um estrondo lá fora. Evelyn foi às traseiras. O que viu desafiava a razão. A água em fúria chegava quase à casa.
Pôs a trela na sua cadela, uma pinscher miniatura chamada Sheba, e depois correu com Joyce para a garagem. O portão basculante já estava erguido.
Evelyn parou. «Preciso de ir buscar uma coisa!», gritou. Evelyn deu a trela da cadela a Joyce e correu de volta para dentro da casa.
Um som rompe a noite. Joyce vê a casa de Evelyn rasgar-se da garagem, e depois deslizar devagar para dentro do rio.
«Evelyn!», gritou.
«Joyce!»
Evelyn segurou-se à base da porta que dantes levava à casa.
«Acho que parti as costas!», gritou. «Não sinto as pernas!»
Joyce agarrou as mãos da amiga, puxou-a para fora da garagem e deitou-a no chão. Pegou em Joyce pelas axilas e começou a puxar. Ela tem pelo menos mais dez centímetros de altura que Joyce, e os pés arrastam-se pelo pátio. Joyce chegou à base da colina e pousou Evelyn no chão ao seu lado.
O chão estava a liquefazer-se. O rio estava a chegar até elas. «Temos de sair daqui!», diz Joyce. Estava exausta. Não havia nenhuma forma de ela conseguir que as duas subissem até à estrada.
«Vai!», exigiu Evelyn.
Joyce passa a cadela à amiga. Uma madeixa de cabelo branco cola-se à testa de Evelyn. Joyce afasta-a.
Virou-se e enterrou uma mão na terra. Deu alguns passos, escorregou para trás. Aumentou o ritmo. Não olha para trás.
WESLEY LEVANTOU-SE da cama pelo menos dez vezes para verificar a água. Às duas da manhã, calçou botas de caminhada, pegou numa lanterna e foi até à estrada de acesso à casa. O rio varre Grouse Hollow Lane.
Ouviu alguma coisa. Uma voz de mulher? Parece um sussurro comparada com o rugido do rio. «Não consigo ver!», gritou. «Grite mais alto!»
«Socorro! Socorro!»
Não havia tempo para avaliar opções. Wesley meteu-se na água que empurra com força contra os pés, as pernas, depois os joelhos. Sombras passavam a correr. Havia árvores partidas, telhados, estuques. Wesley agarrou os ramos de um lilás e observou o rio com a lanterna, depois continuou.
Ali estava ela, talvez a uns 7,5 metros. Uma mulher mais velha pressionada contra um tronco de ulmeiro. Os braços agitavam-se acima do rio enquanto a cabeça era intermitentemente coberta pela água. Quando Wesley finalmente chegou à árvore, ergueu a mulher. «A minha perna!», gritou. A sua perna esquerda pendia num ângulo estranho abaixo do joelho.
Quando os pés se enterraram no lodo, a 15 metros da orla do rio, Wesley tentou içar-se. Nada. A mulher está coxa. «Segure-se!», disse-lhe. Ela agarrou-se com força a Wesley. Ele puxou o seu pé para fora, levando-a para fora da água e colina acima.
O seu primo Jay e outro homem, que tinham estado de pé na estrada, vieram a rolar colina abaixo. Jay olhou para a perna da mulher e preocupou-se: a senhora podia entrar em choque. A sua casa é a mais confortável. Os três decidem que ela precisava de ir para lá.
ÀS 7H43 DA MANHÃ, o rádio de Tim deu sinal. Houve uma explicação breve. Mulher, 60 anos, perna partida com gravidade, uma morada em Grouse Hollow Lane. Tim meteu-se no carro e, 10 minutos depois, estava a bater à porta.
A mulher, Flo Horn, estava semiconsciente em cima de um colchão insuflável na sala de jantar de Jay. O marido, Mike, estava ao seu lado. Flo, Mike e Patty Goodwine estavam na casa de Patty quando a casa colapsou para dentro do rio. Mike caiu para dentro de água e aterrou num banco de areia a cerca de 400 metros de distância. Patty, uma viúva de 60 anos com esclerose múltipla, não tinha sido avistada.
Tim observou a perna de Flo. É uma das piores fraturas que já viu. Ainda assim, Flo não parecia estar em choque. Tim foi procurar um paramédico. A estrada passa num borrão e ele travou junto ao sítio onde Jenica Butts estava.
«Jenica, temos de ir!», gritou enquanto batia à porta da frente.
Tim regressou à pickup momentos depois, com Jenica atrás no seu carro. Quando chegaram, Jenica estabilizou a perna de Flo. Tim pediu por rádio uma evacuação médica. Há Black Hawks da Guarda Nacional disponíveis, mas Tim não tinha a certeza de onde estabelecer uma zona de aterragem. Um vizinho, Chris Turner, sugeriu a estrada. Chris passou cinco anos no exército e ajudou a aterrar Black Hawks. Tim pediu emprestada alguma tinta rosa da garagem de Jay e depois correram para a estrada. Chris fez um retângulo na estrada e escreveu «LZ» nos dois extremos.
QUASE CINCO HORAS depois de ele chegar, o UH-60 Black Hawk desceu sobre a estrada. Tim, Jenica e mais dois meteram Flo no helicóptero. O Black Hawk ergueu-se acima das paredes do vale e desapareceu. Nessa noite, a chuva diminuiu consideravelmente. Joyce, apanhada junto de um rail acima da casa de Evelyn, foi levada num veículo todo-o-terreno no dia seguinte. A avó de Wesley foi pouco depois. Três dias depois de o rio obliterar a sua comunidade, Tim e Pam são retirados. Voltarão a casa dois meses e meio depois.
O MUNICÍPIO DE LARIMER sofreu a destruição ou dano de 417 estruturas e duas mortes. Evelyn Starner e Patty Goodwine. O corpo de Evelyn foi descoberto numa margem oito dias depois de desaparecer. O corpo de Patty foi encontrado num campo de detritos da cheia a 8 de outubro. O Departamento de Bombeiros Voluntários de Big Thompson Canyon deu a Tim a sua Medalha de Valor – a mais elevada honra do departamento – por salvar 125 residentes, quer por evacuações, quer por levá-los para terreno mais elevado.
HÁ UMA FITA VERDE e amarela atada ao ulmeiro onde Wesley tirou Flo das águas. É uma das poucas coisas que as pessoas em torno de Cedar Cove não querem esquecer daquela terrível semana. Wesley está no relvado. «Não pensei que tivesse aquilo em mim», diz. «Nunca me vi dessa maneira.»
NUMA NOITE na primavera passada, Joyce Kilmer acordou com o som de árvores a cair. Saltou para fora da cama na sua casa arrendada à saída de Loveland, mas está demasiado escuro para ver o que está a acontecer. De manhã acordou e caminhou pela madrugada, ao longo do caminho que leva à casa. As árvores ainda estão de pé.
Tem a certeza de que não sonhou. Era demasiado real. O som de ramos partidos, o medo. Depois de uns momentos, voltou para dentro.