Mário Costa
Paulo Anexandrino (fotos)
Nunca pensei ser ator, e sei que há certos tipo de papéis que não consigo fazer. Mas enquanto puder vou continuar com esta malta.» A frase é de José Simões, 69 anos, reformado da Força Aérea, e a «malta» são os colegas da Companhia de Teatro Fatias de Cá, fundada em Tomar, a que pertence há mais de dez anos.
«Isto é uma paixão, é como a forcadagem. Eu fui um dos fundadores do grupo de forcados da Chamusca. E mesmo quando estive deslocado nos Açores, porque era mecânico de aviões, sempre que cá vinha tinha de ir fazer uma corrida. Aqui é a mesma coisa. Já não passo sem isto, sem esta camaradagem, sem os ensaios, os espetáculos», diz, a rir, após o almoço que antecedeu mais um encontro de parte do elenco e mais um ensaio da peça Os Relvas (Segundo Alves Redol), que levam à cena numa velha destilaria na aldeia de Brogueira, perto de Torres Novas.
José Simões chegou ao Fatias de Cá em 2004, quando o grupo se preparava para levar à cena O Nome da Rosa, de Umberto Eco, que esteve dez anos em exibição no Convento de Cristo, em Tomar, quase sempre com lotações esgotadas. José era um dos frades da abadia onde ocorriam as misteriosas mortes. Dizer que o Fatias de Cá leva à cena uma peça é quase um eufemismo, uma vez que não usa os palcos – como outras companhias – para mostrar o seu trabalho. Em vez disso, usa os espaços de monumentos, edifícios públicos ou cenários naturais para se apresentar ao público. E os textos são encenados, sempre, a pensar no espaço onde vão ser representados: «Quando partimos para a encenação de um projeto, primeiro pensamos sempre no local onde vamos representar, como é que esse espaço vai ser ocupado, e depois qual o grupo do elenco que vai concretizar o projeto. Não quer dizer que depois não possam ser adaptadas a outros sítios, embora seja complicado. No caso concreto desta peça, Os Relvas, da forma como a pensámos seria complicado fazê-la noutro local de acordo com as necessidades que temos. Tal como com a peça O Nome da Rosa, que seria complicado fazer noutro sítio que não o Convento de Cristo», explica à Selecções Carlos Carvalheiro, 64 anos, encenador, ator, criativo e um dos fundadores do Fatias de Cá.
O encenador dá exemplos concretos desta forma muito peculiar de se apresentarem ao público: «A peça é sempre imaginada para um determinado espaço. Como vamos para sítios que já têm o cenário criado, temos de pensar como enfiamos lá a peça. Dou dois exemplos. Agora estamos a preparar dois projetos novos, um no Tribunal da Relação de Coimbra, onde vamos fazer uma peça a partir dos azulejos que decoram o edifício e que contam episódios da história de Portugal. Isso significa que o que vamos fazer ali é pensado para fazer apenas ali. Estreará em maio. O segundo é nas termas da Curia, onde existem uns balneários desativados e o dono das termas decidiu colocar uma exposição de cartoons de Vasco Gargalo sobre a situação política internacional. Isso deu-nos a ideia de adaptarmos uma peça passada num hospício, no tempo da Revolução Francesa. Quando as pessoas entrarem naquele espaço vão imediatamente para outra época, convivem com o espaço, deambulam pelo espaço, a meio vão jantar, depois voltam, e assim se faz a dinâmica, ao nosso estilo», salienta à Selecções. Esta peça vai ser representada a partir de julho deste ano.
O Fatias de Cá nasceu em 1979 por iniciativa de um grupo de pessoas inconformadas com a falta de atividades culturais em Tomar. Entre elas estava Carlos Carvalheiro: «Tomar, na época, era uma cidade muito fechada, quase feudal, culturalmente fechada e onde nada ou pouco se passava além das atividades das coletividades. Havia uma certa elite cultural, mas estava dispersa. Até que houve a ideia de se fazer um espetáculo. Eu sempre tive a paixão do teatro, e juntou-se ali uma certa nata cultural da cidade para se fazer um sarau cultural com números de revista feitos em Tomar quarenta ou cinquenta anos antes, a que acrescia uma homenagem a uma figura querida na cidade, o farmacêutico e jornalista Nini Ferreira. Por isso a peça chamou-se Fatias de Cá com Nini Ferreira, numa alusão ao doce típico da cidade. E foi um êxito tremendo, mexeu com as pessoas, com a cidade, e foi o pontapé de saída para outros projetos e ideias. Na altura foi uma pedrada no charco», revela à Selecções do Reader’s Digest.
O gosto pelo teatro sempre fez parte da vida de Carlos Carvalheiro. Começou a representar no liceu, andou pelo teatro universitário, fez engenharia e quis o destino – e a mãe – que fosse professor. Mas o que sempre quis foi o teatro. E do grupo que em 1979 fez Fatias de Cá com Nini Ferreira saiu um pequeno núcleo que se autonomizou criando uma associação cultural vocacionada para o teatro, o Fatias de Cá. Estava-se em 1982.
Nos primeiros anos de vida o grupo andou em bolandas, sem local certo para ensaiar e apresentar os seus trabalhos. No final da década de 80 decidem fazer formação em animação cultural através do Fundo Social Europeu e em 1998 são reconhecidos pelo Ministério da Cultura como entidade com atividade teatral de âmbito profissional.
Apesar da crise dos anos 90, que lhes reduziu o efetivo do elenco, o grupo consegue concretizar alguns projetos que o lançam definitivamente no panorama do teatro nacional: «Em 1996 fizemos As Ligações Perigosas, baseado no romance de Chordelos de Laclos, no Convento de Cristo, e foi um êxito tremendo. Em 1997 fizemos uma peça, também no Convento de Cristo, que nunca pensámos que iria ser o sucesso que foi e que ainda hoje levamos à cena, o T de Lempicka, de John Krizanc, que esteve em cena na Quinta da Ribafria, em Sintra, em 2019. Foi a primeira peça com o conceito espetáculo mais jantar», salienta Carlos Carvalheiro.
Em cima da mesa está uma nova parceria com uma companhia estrangeira, desta vez na Tunísia, no âmbito de um festival de teatro. «Achámos piada ao atrevimento deles em organizarem as 24 Horas de Kef, que é o nome da cidade. A ideia é fazer teatro durante vinte e quatro horas sem parar, ou seja, a qualquer hora o público tem uma peça a ser representada, é fantástico. Eles fizeram-nos o convite e nós respondemos com um outro desafio: fazer A Tempestade, de Shakespeare em coprodução e em duas línguas (árabe e português). Eles aceitaram e vamos lá estar no final deste mês de março. Nós já fizemos este projeto com outros países quando foi o projeto europeu que fizemos com os ingleses, os polacos, e mais tarde com os japoneses. Ou seja, ...
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