TEXTO: CARLOS COUTINHO / MÁRIO COSTA
FOTOS: PAULO ALEXANDRINO
Ator de Confiança 2015
NASCEU RUI ALBERTO PIRES DE CARVALHO, em 1927, na cidade de Lisboa, mas todos o conhecem por Ruy de Carvalho, um dos maiores atores de sempre em Portugal, e que, pelo quarto ano consecutivo, foi eleito «Ator de Confiança» pelos leitores da Selecções do Reader’s Digest. Iniciou-se no teatro, como amador, em 1942, no Grupo da Mocidade Portuguesa, com a peça O Jogo para o Natal de Cristo, com encenação de Ribeirinho. Apaixonado pela arte da representação, frequentou o Conservatório Nacional de 1945 a 1950, cujo Curso de Teatro/Formação de Atores terminou em 1959, com 18 valores.
A estreia profissional aconteceu em 1947, no Teatro Nacional, com a Companhia Rey Colaço-Robles Monteiro, na comédia Rapazes de Hoje, de Roger Ferdinand.
Em 1950, ficou conhecido pela sua interpretação de Eric Birling em Está lá Fora um Inspetor, de Priestley (1951), estreado no Teatro Avenida. Nesse mesmo ano ingressou no Teatro do Povo (mais tarde Teatro Nacional Popular), onde faria todas as temporadas de verão, sob a direção de Ribeirinho, até 1958. Importante ator da sua geração, fundou, em 1961, o Teatro Moderno de Lisboa, um grupo teatral progressista, que revelou autores nunca representados em Portugal, à revelia da censura. Em 1963, foi para o Porto, assumindo a direção artística do Teatro Experimental do Porto (TEP), onde realizou a sua única experiência como encenador, em Terra Firme, de Miguel Torga. Fez ainda parte de outras companhias, como a Companhia de Laura Alves, a Companhia Rafael de Oliveira ou a companhia sediada no Teatro Maria Matos, com as quais efetuou digressões ao Brasil e a África. Em 1977, esteve no relançamento do Teatro Nacional D. Maria II (TNDM II), a cuja companhia pertenceu até à sua extinção.
E também passou pela rádio, onde deixou uma marca inconfundível, e onde regressou para dar esta entrevista. Durante toda a década de 80, Ruy de Carvalho foi a voz do «Repórter da História», uma rubrica de autoria de Zuzarte Reis e que teve imenso êxito na Rádio Renascença: «A memória desta casa é muito grande. Eu estive aqui a trabalhar diariamente durante onze anos. Só não vinha cá ao sábado e ao domingo. Era um programa de história de muita qualidade, que chegou a passar nas escolas, porque as escolas e os professores ouviam aquilo com muito interesse. E as pessoas ficavam a conhecer muitas coisas sobre muitos temas, desde futebol até à vida do Goethe, por exemplo. Era um salto cultural muito importante. O futebol é um salto com pontapés na bola, mas o Goethe é uma delícia lê-lo, porque esse é que faz bem», salienta Ruy de Carvalho.
Um trabalho onde o ator deu não só a voz, mas a também uma interpretação muito particular a textos de grande qualidade e muito didáticos. Esta foi uma segunda experiência de Ruy de Carvalho em rádio, depois de ter sido uma das vozes pioneiras no teatro radiofónico: «Sim, mas eu não me lembro de quando é que comecei a gravar. Foi há muitos anos, muitos anos, e trabalhei com muita gente da Renascença. Lembro-me de que tinha ido gravar no dia 25 de abril de 1974, e houve um soldado que me prendeu. Prendeu, mas depois soltou-me. Ele estava muito entusiasmado com o que estava a acontecer. E eu também estava. Mas hoje já não estou tanto», revela.
Ruy de Carvalho acabou por participar involuntariamente na história desse dia ao ver-se envolvido na ocupação militar da Renascença embora por pouco tempo. Ele, que até tinha de gravar algumas cenas de um filme: «Eu passei a manhã do dia 25 de abril numa oficina à espera que reparassem o escape do meu automóvel, porque tinha de ir nesse dia para Seia, onde ia fazer um filme com o Manuel Guimarães.»
Com 89 anos de vida e 73 de carreira, Ruy de Carvalho diz ter vivido intensamente o entusiasmo saído da Revolução dos Cravos e, tal como milhares de outras pessoas, diz ter acreditado num futuro melhor para o país. Mas hoje mostra-se triste: «Não estou tão satisfeito como devia estar. Acho que não estamos a aproveitar bem uma coisa que nos foi dada e que se chama liberdade. Estamos a usá-la como libertinagem. Estamos a usá-la desunidos, e temos de nos unir e de ser um povo com ideias diferentes. E acho que deviam cultivar essas ideias e discuti-las com calma e serenidade, a bem daqueles que sofrem, que é povo, o chamado mexilhão que paga sempre pelos defeitos dos outros. Aqueles que mandam deviam pensar que estão a servir mal o seu povo. E falo de todos, de uma maneira geral.»
O ator tem sido o rosto e a voz do descontentamento e da revolta em defesa dos atores e das suas condições de trabalho. Defensor do diálogo e da serenidade, há três anos esperou e exasperou pela resolução de um problema com as Finanças. Em causa estava saber-se se o seu trabalho era ou não uma «propriedade intelectual» para efeitos tributários. Cansado, resolveu escrever uma carta aberta a todos os ministros, onde deu conta da sua revolta. E a desilusão mantém-se: «Eu tenho colegas que neste momento não estão a passar nada bem, e isso toca-me profundamente. A cultura em Portugal está muito abandonada pelos homens cultos deste país, ou seja, os escolhidos, mas que são pouco cultos. Isso é que me custa muito, porque não cuidam daquilo que é necessário cuidar, que é a arca da fortuna, a arca de ser de um povo, que é a cultura. Não ajudam, não facilitam a vida às pessoas, e neste momento os artistas em Portugal estão todos a viver em condições deficitárias, chamemos-lhe assim. Não podem servir o público como deveriam servir», lamenta Ruy de Carvalho.
AO LONGO DA SUA CARREIRA, Ruy de Carvalho teve a oportunidade de interpretar vários géneros de teatro, até o musical. Fez parte do elenco de Passa por Mim no Rossio, Maldita Cocaína e A Casa do Lago, todos encenados por Filipe La Féria. E também passou pelo Teatro Nacional de São Carlos: «Estive sempre ligado à música, porque a minha mãe era pianista, e estive no Coro do São Carlos. E fiz comédias musicadas com a Laura Alves, como o Boa Noite Betina e Margarida da Rua, e com o Florbela Queiroz fiz o Aniversário da Tartaruga. E cantei noutras peças; cantei no Brecht, por exemplo.»
Nos seus 73 de atividade, Ruy de Carvalho fez cinema, teatro, televisão, musicais, e não consegue destacar um momento ou momentos mais marcantes, nem dizer por qual área gostaria de ser recordado, até porque já perdeu a conta ao número de peças de teatro que já fez: «Fiz muitas. Fiz muita coisa. Fiz muito Shakespeare, fiz muito teatro português, fiz muita comédia. Eu nunca estive parado. Acho que só estive desempregado durante quatro meses em 73 anos, o que não é mau, e devia ser assim com os meus colegas todos. Eu tenho estado muito pouco tempo parado, o que me tem ajudado a viver melhor. Não só pelo aspeto económico, mas também espiritual, que é muito importante, para termos sempre a cabeça ocupada com novos projetos.»
Apesar de não escolher um momento em particular do seu percurso, Ruy de Carvalho destaca um trabalho em concreto: «No teatro por exemplo, gostava que recuperassem um boca-dinho do Render dos Heróis, do José Cardoso Pires. Foi uma peça que me marcou muito. Uma peça que esteve em cena e da qual só podíamos divulgar o nome, porque estava censurada, e nem os nomes dos atores podiam ser divulgados. Estávamos a trabalhar no cinema Império no intervalo das sessões do cinema. E acho que até ganhei um prémio, que não me foi atribuído. Mas fiz o Rei Lear também, fiz o Rómulo, o Grande», recorda.
Acarinhado pelo público que o respeita e o considera um dos seus maiores atores, sendo mesmo considerado «Ator de Confiança» pelos leitores das Selecções pelo quarto ano consecutivo, Ruy de Carvalho é uma referência para as novas gerações, pelo exemplo de humildade: «A humildade tem a ver com uma coisa que se chama liberdade. É dar liberdade aos outros, e pensar sem-pre nos outros, com quem trabalhamos e para quem trabalhamos. Ser humildes com todos, a começar por nós. Mas humildade não é subserviência; humildade é saber viver com os outros, saber viver em democracia. Não podemos ser arrogantes, porque todos falhamos, todos temos momentos menos bons na vida, e podemos estar sempre a pensar que somos os melhores do mundo. Não somos. Há sempre gente que se equipara a nós, a quem temos de respeitar.»
Uma postura que se reflete também na forma como passa os seus ensinamentos às novas gerações com quem vai trabalhando, e a quem transmite o que a experiência já lhe ensinou. Acima de tudo, garante, gosta de ser honesto e frontal, mas com cuidados: «Normalmente, quando tenho de dizer alguma coisa, fazer algum reparo, digo de maneira que não os ofenda, porque alguns ofendem-se quando lhes dizemos para não fazerem de uma determinada maneira, e fazerem de outra. Eu tive um exemplo fantástico com um homem que foi um grande ator. Para mim, foi acima de tudo um artista: João Villaret. Um dia no ensaio de uma peça onde era ele que ensaiava o texto, eu tinha um monólogo. A peça chama-se Está Lá Fora um Inspetor, e eu tinha de dizer o texto todo, em que confessava um crime. Ele mandou-me fazer o monólogo e, no fim, depois de dizer que estava tudo bem, conversou comigo e disse-me “e se fizesses assim” e “se fizesses daquela maneira”, e fê-lo de forma tão convincente que eu aceitei de imediato. Tudo tem de ser feito com amor; temos de tratar o outro com amor. Porque com amor ele vai mais depressa, é mais cativado, mais ensinado. Não podemos ser arrogantes, porque nós quando estamos a ouvir os outros somos capazes de os emendar, e às vezes não nos emendamos a nós.»
Uma relação que para este consagrado ator tem de ser, e deve ser, recíproca, sem olhar às barreiras geracionais. Apesar da sua longa experiência, Ruy diz aceitar que os colegas mais novos o corrijam: «Qualquer colega mais novo me pode dizer “Oh, Ruy isso não é assim”. Aliás, isso acontece na série que estou a fazer na televisão, Beirais, e temos duas colegas a ensinar-nos, a Rita Lelo e a Inês Rosado, que são duas raparigas novas, mas que sabem muito bem o que querem e sabem pedir como querem que seja feito. E eu ouço-as», explica Ruy de Carvalho.
A PAR DA PRESENÇA na série Bem-Vindos a Beirais, Ruy de Carvalho anda a percorrer o país com o espetáculo Trovas & Canções – Atores, Poetas e Cantores, onde contracena com o seu filho João e o neto Henrique. Um espectáculo familiar, já que a autoria e a produção são da filha, Paula Carvalho, e do genro, Paulo Mira Coelho. Em palco são acompanhados por mais três artistas: a cantora Ana Marta e os músicos Ricardo Grama e João Correia. «Este espetáculo tem várias vertentes, vários objetivos, e uma delas é a família e a sua importância, e na minha há muitos atores, porque eles não são só três. Com o meu filho já são seis: havia dois irmãos do meu pai que eram atores, e um trisavô do meu filho por parte do pai. Um dos objetivos é esse: a união da família, com a sorte de ter estas três gerações de atores. Outro dos objetivos é homenagear a língua portuguesa, a cultura portuguesa e o povo português. Em Bragança houve uma senhora espanhola que foi assistir ao espetáculo no dia mundial da poesia e que depois me mandou uma mensagem a dizer que a única coisa de que não tinha gostado foi eu ter dito que era um espetáculo sobre portugueses e para portugueses. Ela era espanhola e tinha adorado. E eu expliquei o porquê de ter dito aquilo: nós estamos a dar muito daquilo que vem de fora, e não estamos a mostrar aos portugueses aquilo que temos de bom.» E, explica Paula de Carvalho, também presente nesta entrevista, «nós só pegámos no século XX, mas temos três homenagens a três grandes nomes da nossa cultura, Camões, Gil Vicente e Bocage.»
A recetividade do público tem sido bastante boa, com salas cheias e audiências muito participativas, que, quando a cortina se fecha, ainda ficam na sala em convívio com os atores: «Eu emociono-me muito com a reação do público. Eles cantam connosco e, quando dizemos que estamos a acabar, soltam um “ohhh”, como que a pedir mais. Emociono-me com os músicos, que arrebatam as pessoas, emociona-me muito ouvir o meu neto e o meu filho a cantar. Ou a ouvir o meu neto dizer o Cântico Negro do Régio, de uma forma muito dele. Fico maravilhado.»
No passado dia 8 de maio, Ruy de Carvalho recebeu pelo quarto ano consecutivo, o galardão de «Ator de Confiança», uma escolha dos leitores das Selecções do Reader’s Digest. E o que significa para Ruy de Carvalho ser considerado «Ator de Confiança»?
«Dou-lhe um exemplo: abordam-me na rua e perguntam-se se vou entrar numa novela. Se eu disser que sim, a pessoa diz: “Então vou ver.” É um selo de garantia que o produto vai ser bom. É o reconhecimento do público e das instituições. Mas principalmente do público.»
As Conversas na Praça são uma parceria Selecções Reader’s Digest e Rádio Sim. Pode ouvir esta entrevista em www.radiosim.sapo.pt.
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