TEXTO: MARTA GROSSO
FOTOS: JOANA BOURGARD/RENASCENÇA
NASCIDO NO PORTO, Aurélio Carlos Moreira, 78 anos, sempre se sentiu atraído pelas ondas da rádio. Por volta dos seis anos, convenceu o pai a inscrevê-lo como sócio de uma rádio local para poder pedir discos: «Estávamos no princípio dos anos 40, por altura da [Segunda] Guerra e as rádios ainda não sobreviviam à custa da publicidade. E lá estava o Aurélio, semanalmente, a pedir o disco e a ouvir: “Agora, para o menino Aurélio, vamos transmitir” esta ou aquela música», conta numa entrevista que deu na Renascença, uma das rádios onde ajudou a fazer história e que ainda hoje o acolhe como profissional. No dia 4 de agosto de 1956, a sua paixão começou a tomar forma. Aos 17 anos, já em Lisboa, descobriu que, se produzisse um programa da sua autoria, poderia ser locutor. «Então criei um programa que se chamava “Viagem musical” – não era mais que uma viagem semanal a uma localidade de Portugal, em que se falava dos seus monumentos e dos seus atrativos turísticos e da música dessa terra ou região».
O programa passava na Rádio Peninsular, um estúdio dos Emissores Associados de Lisboa: «Na altura, praticamente só havia quatro rádios: a Emis-sora Nacional, a Rádio Clube Português, a Rádio Renas-cença e os Emissores Associados de Lisboa. Esses associados agregavam quatro estúdios: Rádio Peninsular, onde eu comecei, Rádio Graça, Clube Radiofónico de Portugal e ainda a rádio Voz de Lisboa. Eram as 24 horas do dia divididas por esses quatro estúdios. No Norte, eram os Emissores do Norte Reunidos.»
A «Viagem Musical» tinha voz e produção de Aurélio Carlos Moreira, que, antes dos 18 – altura em que atingiu a maioridade na sequência da morte do pai – já tinha criado outro programa: «Música e curiosidades».
ETAPA A ETAPA
Uma das principais características de Aurélio Carlos Moreira é nunca parar. Alcançado um objetivo, parte para a próxima conquista. Assim tem sido ao longo destes 70 anos de atividade radiofónica, muitos dos quais nos bastidores dos microfones, a produzir : «Gosto de pegar numa ideia e de a tornar realidade.» Mas muitos outros passou-os agar-rado ao microfone, na rua.
As reportagens da Volta a Portugal em Bicicleta marcam a sua vida e a história da rádio: «Fiz 23 Voltas a Portugal em Bicicleta e dois campeonatos do mundo de ciclismo, um na Bélgica e outro na Suíça.» Além disso, esteve em inúmeras provas de ciclismo por etapas.
Tudo começou em 1959, na Rádio Peninsular: «Um ano depois acharam que eu podia levar a Rádio Renascença, que nunca tinha estado presente, a essa prova desportiva, por intermédio do programa “Diário no Ar”. Em 1961, voltei à Rádio Peninsular com a Volta. Foi um ano estanque da Renascença, que depois só voltaria a estar presente, também por meu intermédio, em 1976, quando reabriu depois da ocupação.»
ALÉM DO CICLISMO, Aurélio esteve presente no futebol. A rir, conta como foi obrigado a fazer o relato de um jogo. E o culpado foi Ribeiro Cristóvão: «A Renascença fez um acordo com uma rádio do Canadá e fizemos uma época total, de 1977/78, para essa estação. Em determinado dia, o jogo era no Restelo, entre o Belenenses e o Sporting, e eu preparava-me para fazer o que costumava fazer nos domingos, mas o Ribeiro Cistóvão de repente recebe uma chamada a dizer que quem deveria fazer o relato para a Renascença tinha ficado doente. E disse: “Não há outra alternativa. Eu salto para a Renascença e tu [Aurélio] fazes para o Canadá.” Foi uma miséria. Porque só jogaram os jogadores do Belenenses. Eu era adepto do Belenenses, conhecia-os muito bem e muito pouco os do Sporting. Portanto, só jogaram os de camisola azul. Os outros ficaram a um canto», recorda com boa disposição.
Fora do desporto, as reportagens mais marcantes foram as de 1976. Da eleição democrática do primeiro presidente da República, as primeiras eleições legislativas e as primeiras autárquicas.
«A outra reportagem também mar-cante foi em 1982, pela visita de João Paulo II a Portugal. A Renascença quis que eu fizesse parte das equipas de reportagem, e a primeira foi precisamente quando João Paulo II esteve na Sé de Lisboa, em oração. A minha emoção era tão grande que, quando dei por ela, estava a dois metros de João Paulo II, o que era proibido. Podia-me ter custado caro, mas correu tudo bem», diz.
«NÃO PASSEI PELA RÁDIO. VIVI A RÁDIO.»
Um dos programas de Aurélio Carlos Moreira com maior popularidade foi o «Páju» (Passatempo para Jovens), criado em 1957 para o então Rádio Clube Português.
«Era tão popular, que eu tinha a satisfação de por vezes entrar numa cabine telefónica e ver lá escrito: “Aurélio Moreira: 53566.” Era o telefone da Rádio Peninsular. Assim, os jovens, quando saíam do liceu, iam à cabine telefónica e já lá estava o número para telefonarem para o programa a dar uma sugestão.» Começou como programa semanal, mas passou a diário nos Emissores Associados de Lisboa e na Madeira. Acabou por chegar a Angola. No total, o Páju esteve 42 anos no ar.
«Eu poderia ter feito o programa sempre como locutor. Era até uma forma de economizar, porque não tinha de pagar cachês, mas tive o João Paulo Dinis, a Maria Helena Falé, a Maria de Lurdes Carvalho; depois, mais tarde, na Renascença, o Rui Pêgo, o Carlos Ribeiro, o José Can-deias… ia chamando os elementos que eu achava que eram capazes de enaltecer o programa e de o me-lhorar ainda. E passava eu para um segundo plano», conta para explicar como lançou «novos valores».
«Depois, outras pessoas, até ligadas ao jornalismo, começaram comigo. Por exemplo, o Sena Santos, que começou quando eu tinha o “Páju” no Rádio Clube Português; o José Leite Pereira, que foi diretor do Jornal de Notícias; técnicos como o Manuel Tomás, que hoje é um considerado realizador de televisão. O Maurício do Vale, no aspeto de tauromaquia, começou comigo a produzir um programa chamado “Olé Páju” e depois é que passou para a Rádio Renascença.»
Foram muitos os nomes: «Ou os fui descobrindo porque os ouvia, ou eles vinham ter comigo e eu fazia uma seleção. Principalmente, tinham de ter uma qualidade: era gostar da rádio tanto como eu gosto.»
Na Renascença, começou em 1958, quando Maria Helena Bramão, produtora do programa noturno «Poeira de Estrelas», o convidou para a locução. Aurélio não deixou, contudo, a Rádio Peninsular: «Nessa altura era permitido estarmos fixos numa rádio e irmos colaborar no programa de outra estação. A rádio vivia dos produtores independentes. Compravam espaço à rádio e produziam os programas.»
Em 1960, Aurélio integra uma mudança importante na Renascença. O início do «Diário no Ar», que veio preencher o vazio de emissão entre as 15 e as 18 horas.
«ERA UM AUTÊNTICO JORNAL. Não era meu, portanto, posso falar à vontade. Eu era apenas um elemento da equipa. O programa era do Fialho Gouveia e do Paulo Cardoso, também locutor na RTP e um repórter extraordinário. O Fernando Pessa também colaborava, e esse programa foi, na verdade, uma pedrada no charco, porque era de música, mas principalmente de informação.»
Informação a todos os níveis: «Acompanhámos festivais, e eu consegui levar a Rádio Renascença à Volta a Portugal por intermédio desse programa», que tinha um slogan muito interessante: “Tudo aquilo de que você gosta é a nossa especialidade.”»
Além do «Diário do Ar», Aurélio Carlos Moreira destaca três marcos na história da Renascença. O primeiro, em 1977, quando começou a funcionar 24 horas: «A Renascença fechava às duas da manhã e só reabria às 6. Durante essas quatro horas, não havia qualquer programação. Sugeri ao engenheiro Magalhães Crespo criarmos um programa noturno», e surgiu o «Encontro da madrugada», no qual colaboraram Ausenda Maria, recentemente falecida, Ribeiro Cristóvão e Rui Pêgo.
O segundo aconteceu em 1985, quando foram criados os emissores regionais, aproveitando os emissores de onda média. «Eu fui encarregado da Voz do Alentejo, que foi o primeiro e nasceu a 20 de abril de 1985, depois fui criar o emissor de Viseu – a Voz de Viseu – um ano e meio mais tarde; logo em seguida, a Voz de Leiria, no início dos anos 90; depois a Voz do Algarve, com os estúdios em Faro. E também colaborava com a Voz de Lisboa, que na altura tinha a colaboração do Henrique Mendes e do Fernando Almeida.»
Entre o «Encontro da madrugada» e os emissores regionais, deu-se o terceiro marco:
«A Rádio Renascença separou a onda média do FM, para poder criar a Renascença FM. Eu separei a onda média da FM com um programa que era apenas transmitido através do emissor de Muge e do emissor do Porto. Era o “Todos à Uma”, um programa da uma às três da tarde, que foi iniciado por mim e pelo Rui Pêgo. Mas logo a seguir o Rui Pêgo foi-se encarregar do FM e eu fiquei sozinho no AM.»
Au r é l i o n ã o s e esquece de uma data. E explica porquê: «Porque eu não passei pela rádio. Eu vivi a rádio.»
«UMA VIDA CHEIA DE COISAS»
Aurélio Carlos Moreira está a preparar um livro onde conta as inúmeras histórias que viveu: «Conto que seja publicado, se não no final deste ano, logo no início do ano que vem. Nele conto essas histórias todas, porque não foi só a rádio que ocupou a minha vida.»
Durante os mais de 40 anos de «Páju», Aurélio lançou uma revista com o nome do programa e depois uma outra, a cores, dedicada ao Alentejo e chamada O Alentejo Ilustrado. Era vendida em todo o país e focava um pouco de tudo: a parte cultural, desportiva, recreativa, a parte de dar a conhecer aos próprios alentejanos pessoas conhecidas que eles não sabiam que eram alentejanas.
Mais tarde, nos anos 90, lançou um jornal da rádio, para divulgar a rádio ao nível nacional e o movimento das rádios locais, que foram muito importantes. De tal maneira, que também fundou uma rádio local: «Ainda sou cooperante dessa rádio, que foi a primeira a sul do país: a Rádio Pax, de Beja. Enquanto não foi legalizada, esteve em meu nome, durante aquele tempo todo», conta.
Aurélio Carlos Moreira passou também pela televisão. Em 1958, com 20 anos, entrou para a RTP como adjunto do serviço de produção e publicidade, liderado por Artur Varatojo – «um nome muito famoso na televisão, porque tinha um programa de investigação policial com o nome “Inspetor Varatojo”». Aurélio tinha a seu cargo a produção de uma série de programas, como o «Castelos de Portugal» e «Recantos de Portugal».
Mas durou pouco tempo na televisão: «Estive um ano e tal, porque a rádio… a rádio é a minha paixão», admite.
Foi a rádio que o levou a Cabo Verde, onde esteve cerca de um ano e meio a dirigir a Rádio Clube, hoje uma rádio nacional.
«QUANDO CHEGUEI LÁ, a rádio tra-balhava umas cinco horas por dia. Quando saí já trabalhava 16 horas diárias. Fizemos os primeiros relatos de futebol, as primeiras transmissões inter-ilhas, mas a parte que me sa-tisfaz mais é deixar sementes. Ainda hoje, na televisão e na rádio de Cabo Verde estão elementos que começaram ao meu lado, o que é fantástico. Começaram na altura com 20 anos e hoje são homens de 50 e tal anos de idade e que continuam a contactar comigo e a recordar esses bons momentos.»
Um dos que Aurélio gosta de recordar é o concurso de misses. «Tinha de estar presente com as belezas de Cabo Verde em reportagens, e depois vim com elas representar o país ao Casino do Estoril.»
Enfim, uma vida cheia de coisas. «Eu próprio fico surpreendido, quando agora começo a ir buscar coisas para o livro. E digo: “oh, Aurélio, conseguiste fazer isto tudo?” Estive também presente em festivais da canção – no total, talvez some mais de 60 – Eurovisão, quatro ou cinco, OTI, que eram os festivais na América do Sul, uns cinco.»
A RÁDIO É A RÁDIO
Aurélio Carlos Moreira recorda os tempos em que a rádio era sempre feita em direto. Raro era o programa gravado. «Tinha de pedir autorização e explicar bem porque queria gravar o programa», recorda. «O direto… o direto é outra coisa», reforça.
Mas a rádio é a rádio. «Só há uma forma diferente de a tratar», e hoje, diz Aurélio, «é por vezes muito mal tratada». Não gosta de falar sobre isso, mas lamenta algumas alterações.
É o caso das playlists (lista de discos que passam). «Eu concordo que, devido aos estudos atuais, tem de se dizer que esta rádio é para um público assim e assado, mas… nada impede que uma pessoa de 30 anos goste de ouvir músicas que passamos na Rádio Sim, pensada para um público com mais de 55 anos, ou que uma de 60 ou 70 anos vibre com os êxitos que agora passam na RFM, por exemplo.»
O radialista mais antigo da rádio portuguesa critica que os ouvintes sejam postos em «caixas», sem grande escolha. «No outro dia estive a ouvir uma cassete, do tempo das cassetes, do meu programa “Páju” do princípio dos anos 70, e o curioso é que aquele programa, com uma ou outra adaptação, podia ser encaixado na Mega Hits, ou na RFM. E não me deixava malvisto», comenta.
É por isso que, se por um lado a compilação de memórias para o seu livro lhe traz a satisfação de reviver bons momentos, por outro faz crescer alguma tristeza: «Porque faço comparações.» Isso não significa, contudo, que falte gente de qualidade na rádio de hoje. «Há gente magnífica! Só lamento que por vezes não os deixem crescer.»
De sorriso fácil e com uma piada sempre pronta, Aurélio Carlos Moreira assegura atualmente os serões da Rádio Sim (Grupo Renascença), com o programa «Suave é a Noite». Faz a locução. Porque o seu maior defeito, segundo o próprio, é «acordar todos os dias com ideias». E já tem planos para um novo programa: um espetáculo semanal, ao vivo, com público e convidados. Sempre em direto.