QUANDO, A 27 DE SETEMBRO DE 2015, a cidade de Paris decidiu proibir, por um dia, o trânsito automóvel, a poluição baixou 40%. Pessoas com alergias melhoraram subitamente, o ruído diminuiu, e houve uma tranquilidade maior nos transportes públicos e nos passeios que ladeavam as estradas e ruas. A sensação era de calma, segundo a agência que mede o ruído na cidade. Menos 50% de barulho, relatou o Bruitparif, órgão oficial. A presidente da Câmara da capital francesa, Anne Hidalgo, escreveu no Twitter: «Temos de ponderar mais dias sem carros... provavelmente uma vez por mês.»
Parece um sonho, viver numa grande metrópole sem que os automóveis buzinem, ronquem, poluam. Mas, para algumas cidades, esse sonho tem data marcada. Oslo, na Noruega, quer que o centro da cidade fique livre de veículos poluentes até 2019. Para as autoridades locais, a preocupação principal é a emissão de gases poluentes que provocam o efeito de estufa – causador do aquecimento global do planeta.
«Em 2030 ainda haverá pessoas a conduzir automóveis particulares, mas terá de ser um veículo com emissões poluentes reduzidas a zero», avisa Lan Marie Nguyen Berg, membro do partido ecologista local, que gere a cidade em coligação com socialistas e sociais-democratas.
A preocupação das autoridades europeias não se centra apenas no aumento da temperatura global e no que isso pode afetar a Terra. Segundo a Organização Mundial de Saúde, há razões para acreditar que perto de 400 mil pessoas morrem todos os anos devido a complicações respiratórias provocadas pelos fumos dos escapes dos automóveis.
Desde 2015 que os reguladores do ambiente em vários países têm investigado os gases que os carros deitam para o ar, e chegaram à conclusão de que estes poluem muito mais do que os fabricantes asseguravam. Em Portugal, por exemplo, um estudo levado a cabo pelo Instituto Superior Técnico, em Lisboa, no Laboratório de Veículos e Sistemas de Propulsão, descobriu que as emissões rodoviárias podem ser 1,6 a 6,4 vezes superiores à indicada pelas marcas. Ou seja, um carro pode poluir até seis vezes mais do que se pensava, desequilibrando o ambiente e a saúde da população.
Portugal luta contra o tráfego excessivo, mas a população ainda se faz depender de veículo próprio: existem 548 carros por cada mil pessoas, o que nos põe no 26.º lugar da lista de 167 países estudados pelo Banco Mundial. As medidas estão em marcha nas principais cidades.
Lisboa já limita a circulação por todo o seu território. Entre as sete da manhã e as nove da noite os veículos construí-dos antes de 1996 estão impedidos de circular no centro da cidade. Aqueles que têm data anterior a 1992 nem sequer podem entrar nos eixos que dão acesso ao centro nas horas de ponta. Este plano denomina-se ZER, ou Zona de Emissões Reduzidas.
ANTÓNIO MARTINS NEVES, especialista em mobilidade e editor da revista Pedais, esmorece já quanto à ideia fabulosa de uma cidade sem carros. «Não vai haver. Temos de compreender que existirá sempre necessidade de viaturas de transporte particular, de urgência, de deslocação urgente.» Para António a discussão deve ser feita de outra forma. «Estamos a condenar a civilização, e a distração em relação a este problema é enorme. Depois da cimeira do clima em Paris, onde se fixaram metas bondosas mas acanhadas, o tema saiu dos jornais e das preocupações quotidianas. A carbonização do planeta, um palavrão que significa o nível de gás carbono na atmosfera, dita a inabitabilidade da Terra para os seres humanos num prazo muito curto.»
A afirmação é corroborada pelo mais recente estudo da NOAA, a agência meteorológica norte-americana. Segundo um relatório de maio de 2015, nunca o mundo esteve tão intoxicado de dióxido de carbono e seus derivados. São 400 partes por milhão, contra as 120 que existiam antes da Revolução Industrial. A subida desde os anos 80 do século XX é de 60 partes por milhão: um susto para os cientistas e para a humanidade.
Prossegue o especialista: «A ignorância sobre estes factos e o silêncio dos órgãos de comunicação social demonstram ainda uma mentalidade perigosa para o planeta. Mas a solução não é substituir, por exemplo, o carro com motor de combustão interna a derivados de petróleo por um com motor elétrico.»
Surpresa... Então porquê, pergunta-se? «Porque a energia necessária para carregar o motor elétrico vem, principalmente, de energias não renováveis e dependentes do petróleo ou do gás natural. Igualmente poluentes. Os carros são, também eles, constituídos por materiais poluentes, como os plásticos, as borrachas, tudo ligado ao petróleo.»
Mas há solução. Que tal a bicicleta? O editor da revista especializada propõe que não se faça guerra entre o carro e as duas rodas: «Não faz sentido contrapor um meio ao outro. São totalmente diferentes. Mas pense-se: uma bicicleta leva-se para casa. Um carro deixa-se na rua. A qualidade do espaço público, do ordenamento e qualidade desse espaço, é fundamental em cidades cada vez mais populosas. O espaço que os carros ocupam subtrai permanentemente qualidade de vida às pessoas. Onde está um carro não pode estar uma mesa e cadeiras para uma conversa de fim de tarde... A libertação da cidade não se funda apenas nas questões poluentes, mas acima de tudo na saúde da sociabilização.»
Inês Conceição, urbanista, explica o que o planeamento urbano deve ter: «Há um cuidado especial com o espaço público, incluindo as vias e o estacionamento automóvel. No entanto, as teses ensinadas há quinze anos nas universidades, que são hoje as que os urbanistas que estão a trabalhar aprenderam, não contemplavam os meios alternativos e não poluentes. Ou os espaços das bicicletas e novos modelos de mobilidade.»
Isto implica quer uma renovação dos conceitos académicos, quer um refrescamento dos modelos aplicados nas cidades, e afirma: «Tendo nós evoluído para a circulação das bicicletas, por exemplo, nas vias que eram exclusivas para automóveis, tem de se replanear as cidades de raiz, para que o tráfego se acomode sem conflitos.»
A urbanista sustenta também que o fim dos carros é impossível. «As famílias quererão sempre uma livre mobilidade. Dentro da cidade podem e devem ser melhorados os transportes públicos, mas há muita mobilidade automóvel que se prende com transportes de mercadorias, por exemplo. Uma mercearia, uma loja, um supermercado, não sobrevivem sem este transporte individual particular. É impensável levar paletes de toneladas de alimentos de transporte público. O que pode haver são alternativas do ponto de vista energético não poluente e renovável. Mas desde o carrinho de mão nos tempos recuados que cada pessoa compreendeu a necessidade da mobilidade individual», diz Inês Conceição.
No sudeste da China já compreen-deram os conceitos de Inês Conceição e dos seus colegas urbanistas. A cidade-satélite de Chengdu, chamadaGrande Cidade, que deve abrir em 2020, está pensada pelos arquitetos Adrian Smith e Gordon Gill para eliminar os automóveis. «Todos os pontos estão apenas a uma distância de 15 minutos a pé», dizem os planeadores. «Esta é uma cidade-protótipo, onde teremos a prova de que os carros são dispensáveis ou podem ser reduzidos ao mínimo possível», acrescentam.
ATENTO ÀS MUDANÇAS está o multimilionário Richard Branson, excêntrico dono da empresa Virgin. «Se queremos um planeta neutro em emissões de carbono em 2050, então as empresas que fabricam automóveis têm de mudar radicalmente de atitude», disse em entrevista a Richard Quest, em novembro de 2015. «O carro deixará de ser carro como o conhecemos. Passará a ser outra coisa, outro conceito, baseado em energias limpas, como a energia solar ou eólica.» Branson, que investe agora em mobilidade, acompanha com atenção diversos esforços dos construtores para mudar de paradigma energético.
Mas isto são carros. Não liberta a cidade de automóveis, portanto. Melhorará a emissão de gases poluentes e pode obrigar a uma mudança de consumo energético – mas o problema da cidade congestionada mantém-se.
Por isso a italiana Next propõe uma solução vinda do fundo do filme Metropolis, de Fritz Lang: cápsulas elétricas para nove passageiros, que se vão encaixando umas nas outras formando um comboio. Quando chegar o momento, as cápsulas desacoplam-se e seguem o seu caminho. Tudo não poluente e, melhor ainda, sem condutor.
O conceito está a ser testado em simuladores, e a empresa garante que os congestionamentos de tráfego terão uma queda de 78% e uma libertação de espaço público de perto de 80%. Ou seja, um «comboio modular» da Next leva em apenas quatro módulos o mesmo número de passageiros que seriam transportados em treze carros.
Em Trikala, na Grécia, o conceito do transporte modular sem condutor já está a ser testado desde outubro de 2015. Gratuito, o pequeno autocarro transporta uma dezena de passageiros a uma velocidade de apenas 20 km/h. O governo grego teve de mudar a legislação para proteger este transporte, que se chama CityMobil2, porque o código da estrada nada dizia acerca de carros sem condutores... Movido a eletricidade e no contexto de uma pequena cidade onde os condutores são apressados, os peões distraídos e os animais cruzam as ruas em plena liberdade, o circuito tem apenas uma linha com 2,5 quilómetros de extensão. «Um êxito até agora», comenta o gestor do projeto, Vasilis Karavidas, que está em permanente contacto com a empresa-mãe, a Robosoft, na cidade francesa de Bidart.
Há sempre um futuro mais longínquo, onde todas estas tecnologias serão passado. A empresa Google quer carros individuais autoconduzidos e com recurso a energias alternativas e renováveis, mistas, que podem ir da célula de hidrogénio à energia solar.
Mais à frente no tempo ainda há projetos como o transporte público que usa apenas o vento ou a inércia para alimentar as baterias.
E ainda o sempre eterno carro voador, um sonho humano a piscar o olho a Ícaro. Neste ano, o AeroMobil 3.0 levantou voo para uma demonstração, mas está longe de ser um produto produzido em cadeia. Meio pássaro meio carro, é a enésima tentativa de pôr em prática o sonho dos condutores que desesperam diariamente atrás do volante: saltar por cima das filas e alcançar o destino numa penada. Ian Pearson, engenheiro e professor na World Academy of Arts and Science, confia que «haverá carros voadores, mas poucos, porque nem toda a gente tem capacidade de os pilotar».
Um dia, no futuro, a acreditar na ficção científica, o transporte será simples: apenas teletransporte, como vemos fazer a Spock e a Kirk na série televisiva Star Trek. Enquanto o momento não chega, pedalar, andar a pé e de transportes públicos, ideias de sempre, ainda são a melhor opção